Capítulo II - Transferência [Parte 2]

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Nakajima estava na sala de informática do Colégio Jusho, sentado na frente do computador do servidor, que estava conectado com o exterior via modem, tentando falar com Loki.

— E então, como foi? A experiência de movimento deu certo?

— Suponho que seria mais adequado dizer que mostrou alguns resultados. Pelo menos até certo ponto. — A voz baixa e funda que saía dos alto-falantes fazia Nakajima tremer da cabeça aos pés. Nakajima não sabia que Loki já tinha adquirido a habilidade de se manifestar fisicamente. Ele pensava que "resultados até certo ponto" significava que Loki podia existir dentro de outro computador como uma inteligência artificial independente.

— Bom, então acho que você não tem escolha a não ser reconhecer como a minha tecnologia é boa.

— Se é isso que você quer pensar, fique à vontade. Só vou dizer que ainda estamos muito longe da perfeição.

— Bom, isso era de se esperar. Ao se enviar tanta informação assim de uma vez só, é muito provável haver perda de dados. — Suor escorria da testa de Nakajima, onde os fones de ouvido do microfone se prendiam às suas têmporas. Nakajima continuou a falar com ar de calma e desinteresse, mas seu corpo inteiro, duro de tensão, demonstrava a inquietude da sua mente.

"O que vai acontecer se Loki conseguir se manifestar?" — Nakajima se perguntava, ignorante da verdadeira situação — "Não, isso é possível. Veja só, ele está me obedecendo fielmente nesses testes da teoria da transferência de demônios."

Teoria da Transferência de Demônios.
Adquirir a habilidade de se locomover livremente pela Terra é algo que todos os demônios desejam desde o início dos tempos, não apenas Loki. Desde os tempos antigos, os lugares em que um demônio pode se manifestar na Terra sempre foram extremamente limitados. Além disso, uma vez que um demônio é de fato evocado, só pode manter sua forma dentro de um raio de alguns quilômetros do ponto onde foi chamado. Pode-se dizer facilmente que esse é o único motivo de a Terra ter sobrevivido por tanto tempo sem sofrer uma invasão de demônios. Nakajima tinha criado uma tecnologia que virou o que até então era senso comum no mundo dos demônios de cabeça para baixo. A tecnologia digitalizaria um demônio e o transferiria para outros computadores através da internet. Se aperfeiçoada, essa tecnologia removeria as restrições físicas do movimento dos demônios na Terra.

Nakajima achava que sua experiência finalmente tinha dado frutos. Ele foi ingênuo na sua linha de pensamento. Pra começar, ele era só um estudante comum que nunca tinha tido contato com um demônio antes, e de cara já estava lidando com um demônio superior e absurdamente poderoso como Loki, o que poderia muito bem causar uma tragédia. Ainda assim, pode-se dizer que ele estava sendo prudente só de perceber o perigo que Loki podia representar se conseguisse a habilidade de se manifestar.

"Eu posso acabar tendo que evocar outro demônio poderoso do Mundo Atziluth que possa fazer frente a Loki."

Incapaz de conter seu desconforto, Nakajima começou a ponderar essa alternativa ainda mais perigosa, quando uma voz surgiu de repente nos alto-falantes.

— Me dê Yumiko Shirasagi.

— O quê?!

— Me dê Yumiko Shirasagi.

— Não! Não posso fazer isso! — No instante em que ouviu o nome de Yumiko, Nakajima se alterou. Até ele ficou surpreso com a própria reação.

— Garoto, com quem você pensa que está falando?! — A voz de Loki demonstrava uma ira jamais vista antes. A máquina emitiu um ruído estranho, e faíscas voaram de onde os cabos se ligavam nela.

— Tudo bem, tudo bem, calma... — Nakajima cedeu à ameaça de Loki sem resistência alguma. Indignado consigo mesmo, Nakajima mordeu o lábio, com força quase que suficiente para produzir sangue, e uma imagem do rosto de Yumiko planou na sua mente. Novamente, ele foi sugado para uma ilusão.

O rapaz já não via mais as enormes montanhas rochosas e o céu azul. Seus olhos pequenos estavam completamente fixados na trilha à sua frente. Seus lábios queimados da cor da terra estavam cobertos por uma crosta vermelha e preta. Seus pés estavam roxos e inchados, com pedaços afiados de rochas cravados neles. Mas o som dos suspiros se aproximando por trás dele faziam seus pés feridos acelerarem o ritmo ainda mais.

— Izanagi, por que você não espera? É por que eu fiquei hedionda? Você me prometeu, quando eu entrei no Yomi*, que me traria de volta de qualquer jeito! Era mentira? Eu nunca correria de você, não importa o que acontecesse!

[*Nota
Yomi: Mundo dos mortos na mitologia Japonesa.]

— Me perdoe... — Como que tentando fugir do medo e da culpa, o rapaz rangeu os dentes e acelerou o passo. Mas a tenacidade da mulher estava lentamente diminuindo a distância entre eles. As lágrimas da mulher, escorrendo dos olhos de pálpebras podres, caíam ao chão junto com seus cabelos enquanto ela gritava.

— Izanagi...!

Quando ela gritava, o buraco na sua bochecha ficava cada vez maior, até que os seus molares ficaram completamente expostos. Logo a trilha terminou, e o rapaz pôde ver um enorme pântano à sua frente.

— Consegui voltar a Toyoashihara... — Seus lábios tremiam de alívio. Abrindo bem os braços, o rapaz respirou fundo o ar úmido, suspirou, se virou e sentou. Por um tempo, ele contemplou a forma grotesca da mulher que o perseguia, mas então balançou a cabeça tristemente e fechou os olhos.

O rapaz começou a meditar. Quando a mulher ficou dentro do alcance do arremesso de uma pedra, seu corpo pareceu flutuar levemente por um momento, e então houve uma grande ondulação na atmosfera. Como se um grande poder invisível tivesse sido liberado, a terra tremeu, e a fissura que apareceu diretamente abaixo do rapaz se espalhou para as montanhas ao redor, e incontáveis rochas começaram a rolar pela trilha. Quando a mulher parou, uma pedra gigante se prendeu na trilha diante dos seus olhos, selando-o.

— Izanagi! Eu irei atrás de você! Mesmo que leve centenas de milhares de anos! — O som dos gritos amargos da mulher ecoava de trás da enorme pilha de terra.

— Me perdoe, Izanami... — Tapando os ouvidos com as mãos, o rapaz avançou pelo pântano, os enormes bambus se estendendo muito acima da sua cabeça.

Quando se recobrou do transe, Nakajima saiu desanimado da sala de informática, e alguns minutos depois, como que esperando ele sair, uma sombra negra se esgueirou pelo corredor e entrou na sala. As duas mãos tatearam a escuridão, procurando algum interruptor de energia, e logo a luz de um monitor estava iluminando dedos num teclado. Eram dedos brancos e finos. Logo eles pararam de se mover, ao som intimidador de uma voz pesada.

— Ohara. — Foi o que a voz disse — Estou te mostrando a lista do programa de transferência que Nakajima desenvolveu. Consegue usá-lo?

— Acho que sim, mas não todas as funções.

— Está ótimo. Não há necessidade de usar muito da tecnologia. Se eu puder me locomover e assumir forma física, posso conquistar o mundo Assiah sozinho.

— Você vai conseguir. — O microfone captou a frase empolgada.

Digital Devil Story: Megami TenseiOnde histórias criam vida. Descubra agora