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Acordei com aquela súbita convulsão que se tem quando todos os músculos que você possui percebem, de repente, que estão de folga. O próximo choque que tomei foi perceber o quão profundamente eu adormecera. Você não dorme assim na estrada, isto é, não se você deseja acordar novamente. Por um momento a escuridão não fez nada para me deixar confuso. Busquei minha espada e apenas encontrei lençóis macios. O Castelo Alto! Tudo voltou à mente. Lembrei-me do pagão e de seu feitiço.

Rolei para a direita. Sempre deixo minhas coisas do meu lado direito. Nada além do colchão, macio e profundo. Eu poderia estar cego, uma vez que meus olhos não me ajudavam em nada. Pensei que as venezianas deveriam estar bem fechadas, já que nem o menor suspiro de luz das estrelas me alcançava. Estava tudo muito quieto também. Eu me estiquei para a beira da cama, mas não a encontrei. Uma cama larga, pensei, tentando achar humor na situação.

Deixei escapar o ar que estava segurando, aquele que aspirei tão rapidamente quando acordei. O que foi que me trouxe até aqui? O que me retirou do feitiço do pagão e me deitou nessa cama tão confortável? Puxei minha mão de volta, trouxe meus joelhos até o tórax. Alguém me botou na cama e tirou minhas roupas. Não foi Makin, ele não me deixaria nu para enfrentar a noite. Esse aí e eu teríamos uma discussão muito em breve. Mas eu poderia esperar até de manhã. Eu só queria dormir e deixar o dia chegar.

Só que o sono havia me chutado para fora e não estava a fim de me receber de  volta. Então eu fiquei lá, deitado, nu nessa cama estranha, pensando onde estaria minha espada.

O barulho surgiu tão quieto que, a princípio, achei que o tinha imaginado.

Encarei a escuridão às cegas e deixei meus ouvidos sugarem o silêncio. E ele voltou, suave como o suspiro de carne sobre pedra. Eu podia ouvir o fantasma de um som, um alento sendo desenhado. Ou talvez fosse apenas a brisa da noite descortinando seu caminho através das venezianas.

O gelo correu sobre minha espinha e fez meus ombros formigarem. Eu me sentei, prendendo com os dentes a minha urgência de falar, de mostrar bravata a terrores invisíveis. Não tenho seis anos, eu disse a mim mesmo. Eu fiz os mortos correrem. Joguei os lençóis para trás e me levantei. Se o horror pagão esperava por mim na escuridão, os lençóis não serviriam de escudo. Mantendo minhas mãos

estendidas, andei para frente, primeiro encontrando a ardilosa quina da cama, depois a parede. Eu me virei e a segui, tateando as pedras. Alguma coisa rodopiou e quebrou com um estalo oneroso. Ralei minhas canelas num obstáculo invisível, por pouco não arrebento os bagos num aparador, e finalmente achei as lâminas da veneziana.

Eu me atrapalhei com o mecanismo da janela. Ele me desafiava loucamente, ainda que o frio deixasse meus dedos desajeitados. Minhas costas se arrepiaram. Ouvi passos se aproximando. Puxei as venezianas com todas as minhas forças. Todos os meus movimentos pareciam lentos e fracos, como se eu me movesse através de um melaço, como nesses sonhos em que a bruxa o persegue e você não consegue correr. 

As venezianas cederam sem aviso. Elas se abriram e descobri que estava em pé bem acima do pátio das execuções, banhado pela luz da lua. Girei pelo quarto.

Devagar, bem devagar. E não encontrei nada. Somente uma habitação prateada e  sombria.

A janela jogou a luz da lua na parede à minha direita. Minha sombra alcançou o arco na janela e caiu sobre os pés de um grande retrato. A pintura de corpo inteiro de uma mulher. Eu fiquei entorpecido: sentia meu rosto como uma máscara. Eu conhecia a pintura. Mãe. Minha mãe no salão grande. Minha mãe de vestido branco, esguia e gélida em sua perfeição. Ela dizia que jamais gostou dessa pintura, que o artista a fizera distante demais, rainha demais. Só William para suavizar a pintura, ela dizia. Se William não estivesse ali, abraçado à sua saia, mamãe já teria se livrado do quadro, dizia. Mas ela não poderia jogar fora o pequeno William.

Tirei meus olhos do rosto dela, pálido sob a luz prateada. Ela se erguia sobre mim, alta em vida, mais alta ainda no retrato. Seu vestido caía em camadas de laços: o artista o captou direitinho e fez o vestido parecer real.

As venezianas abertas deixaram o frio entrar, gélido como eu nunca senti durante um outono. Minha pele ficou toda arrepiada. Ela não poderia jogar fora o pequeno William. Só que William não estava mais lá... Dei um passo atrás em direção à janela aberta.

"Senhor Jesus..." Tentei conter as lágrimas.

Os olhos de minha mãe me seguiram.

"Jesus não esteve lá, Jorg", ela disse. "Ninguém apareceu para nos salvar. Você viu tudo, Jorg. Você viu, mas não veio nos socorrer."

"Não." Eu senti o peitoril gélido da janela encostar na parte de trás dos meus joelhos. "Os espinhos... os espinhos me impediram." 

Ela olhou para mim, olhos prateados pela lua. Ela sorriu e por um segundo achei que me perdoaria. Então ela gritou. Não os gritos que soltou quando os homens do conde a estupraram. Isso eu conseguiria suportar. Ela emitiu os gritos que soltou quando eles mataram William. Gritos feios, roucos, animalescos, arrancados da pintura perfeita de seu rosto.

Eu uivei de volta. As palavras saíam de mim em explosões. "Os espinhos! Eu tentei, mãe. Eu tentei."

Então ele surgiu de trás da cama. William, o doce William, com o lado de sua cabeça escavada. O sangue negro havia coagulado em seus cabelos dourados. O olho daquele lado não estava mais lá, mas o outro me encarava.

"Você me deixou morrer, Jorg", ele disse. Ele falava e sua garganta borbulhava.

"Will." Não consegui dizer mais nada.

Ele ergueu sua mão branca com traços de sangue do mais escuro carmesim.

A janela bocejou lá atrás e eu pensei em me jogar por ela, mas enquanto eu estava ali algo me jogou para frente. Cambaleei e consegui me endireitar. Will continuava ali, mas agora em silêncio.

"Jorg! Jorg!" Um grito me alcançou, distante mas um tanto familiar.

Olhei de volta para a janela e para a queda vertiginosa.

"Pule", disse William.

"Pule!", disse mamãe.

Mas a minha mãe já não soava mais como a minha mãe.

"Jorg! Príncipe Jorg!" O grito veio mais alto e um golpe mais violento me atirou ao chão.

"Sai da porra do caminho, garoto." Reconheci a voz de Makin. Ele permaneceu emoldurado pelo vão da porta. E de alguma maneira deitei no chão, aos seus pés. Não estava perto da janela. Nem mesmo nu, mas ainda de armadura.

"Você estava bloqueando a porta, Jorg", disse Makin. "Esse tal de Robart me disse para vir correndo e você aqui, gritando atrás da porta." Ele deu uma espiada ao redor, procurando pelo perigo. "Eu corri da Ala Sul por causa de seu maldito pesadelo, não foi?" Ele escancarou a porta um pouco mais e adicionou um "príncipe" tardio. 

Fiquei em pé, me sentindo como se Burlow, o Gordo, tivesse me rolado pelo chão. Não havia pintura nenhuma na parede, nem minha mãe, e Will não estava atrás da cama.

Desembainhei minha espada. Precisava matar Sageous. Queria tanto matá-lo que eu podia sentir o sangue, quente e salgado, em minha boca.

"Jorg?", perguntou Makin. Ele parecia preocupado, como se duvidasse de minha sanidade.

Fui em direção à porta aberta. Makin deu um passo para bloquear o caminho.

"Você não pode sair daqui com uma espada em mãos, Jorg, o guarda terá que pará-lo."

Ele não era tão alto nem tão largo quanto Rike, mas Makin era um homem grande, de ombros largos e mais forte do que um homem deveria ser. Não acho que eu conseguiria derrubá-lo sem matá-lo antes.

"É uma questão de sacrifícios, Makin", eu disse. E deixei minha espada cair.

"Príncipe?", ele franziu a testa.

"Vou deixar esse maldito tatuado viver", eu disse. "Preciso dele." Tive uma rápida visão de minha mãe, novamente, e ela desbotava. "Preciso entender qual é o jogo que eles estão jogando. Quem são as peças e quem são os jogadores."

Makin franziu a testa ainda mais. "Já pra cama, Jorg. Tá na hora de dormir." Ele espiou o corredor novamente. "Você precisa de luz?"

Sorri. "Não", disse. "Eu não tenho medo do escuro."

Prince of ThornsWhere stories live. Discover now