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Acordei cedo. Uma luz cinzenta através das venezianas me mostrou o quarto pela primeira vez: grande, bem mobiliado, com cenas de caça representadas nas tapeçarias das paredes. Larguei o punho de minha espada, alonguei o corpo e bocejei.

Essa cama não era adequada para mim. Muito macia, muito limpa. Quando joguei as cobertas para o lado elas acertaram a sineta dos serventes, na mesa de cabeceira, que caiu sobre o chão de pedras, produzindo um belo tilintar antes de quicar e cair sobre um tapete, calando sua voz. Ninguém apareceu. Melhor assim: eu me vesti sozinho  por quatro anos. Diabos, eu raramente me despia! E os trapos que eu vestia eram mais vergonhosos que os aventais surrados dos serventes. Ainda assim. Ninguém apareceu.

Vesti minha armadura sobre os farrapos cinzas que usava como camisa. Um espelho repousava sobre o aparador. Eu o deixei ali, voltado para baixo. Uma rápida passada de mão pelos cabelos, à procura de qualquer piolho gordo o suficiente para ser encontrado, e eu estava pronto para meu desjejum.

Primeiro, abri as venezianas. Não me atrapalhei dessa vez. Olhei o pátio de execução lá embaixo, um quadrado limitado pelas paredes vazias do Castelo Alto.

Ajudantes de cozinha e criadas atravessavam com pressa o pátio desolado com suas tarefas a cumprir, alheios ao céu desbotado sobre suas cabeças.

Eu saí da janela e fui cumprir minhas próprias tarefas. Todo príncipe conhece mais a cozinha do que qualquer outro lugar de seu castelo. Onde mais se poderia encontrar tantas aventuras? Onde mais a verdade é dita tão abertamente? William e eu aprendemos umas cem vezes mais nas cozinhas do Castelo Alto do que em nossos livros de latim e de estratégia. Nós escapulíamos das aulas de Lundist, com as mãos manchadas de tinta, e corríamos através de longos corredores, saltando vários degraus de uma só vez, até alcançarmos o refúgio das cozinhas.

Agora eu caminhava por esses corredores, sentindo desconforto nesse espaço confinado. Eu passara tempo demais sob céus abertos, vivendo a vida, cacete. Nós também aprendíamos sobre a morte nas cozinhas. Vimos o cozinheiro transformar galinhas vivas em carne morta com um movimento de suas mãos. Vimos Ethel, o padeiro, depenar as galinhas gordas, despidas em sua morte, e prontas para ser recheadas. Você logo descobre que não há elegância ou dignidade na morte quando se passa algum tempo nas cozinhas do castelo. Você descobre que tudo é horrível e ao mesmo tempo delicioso.

Virei no final do Corredor Vermelho, com lembranças demais para prestar atenção. Tudo o que eu vi foi alguém caindo sobre mim. Os instintos que desenvolvi  na estrada tomaram conta. Antes que tivesse tempo de registrar os cabelos longos e o vestido de seda, eu a empurrei contra a parede, tapei sua boca com minha mão e pus minha faca sobre sua garganta. Estávamos frente a frente e minha prisioneira me encarou, com olhos de um verde impossível, como um vitral. Transformei meu rosnado em um sorriso e destravei meus dentes. Dei um passo para trás e a soltei.

"Perdão, milady", eu disse, e esbocei uma reverência vazia. Era alta, quase da minha altura, e certamente não era muitos anos mais velha.

Ela arreganhou um sorriso feroz e passou o dorso da mão na boca. Sua mão ficou manchada de sangue, de uma mordida na língua. Pelos deuses, ela era boa de se olhar. Tinha um rosto forte, o nariz e as maçãs do rosto eram finos, seus lábios carnudos - e tudo isso emoldurado por cabelos vermelhos-escuros.

"Meu Deus, você fede, garoto", ela disse. Ela me rodeou, como se inspecionasse um cavalo à venda. "Você tem sorte que Sir Galen não está comigo ou uma criada estaria recolhendo sua cabeça do chão neste instante."

"Sir Galen?", perguntei. "Ficarei de olho nele." Havia diamantes em volta de seu pescoço, numa teia complexa de ouro. Trabalho de Spana: ninguém na Costa Equina conseguiria fazer uma joia assim. "Não seria de bom-tom que os hóspedes do rei saíssem por aí matando uns aos outros." Pensava que ela deveria ser a filha de um mercador que veio bajular o rei. Um mercador muito rico ou talvez a filha de algum conde ou um nobre qualquer do leste: havia um certo ruído oriental em sua voz.

Prince of ThornsWhere stories live. Discover now