Podia-se ver o sereno tomando boa parte da rua, quando passos de trabalhadores soavam até seus carros, ou até mesmo voltando para suas casas.
Não era cedo quando tocaram a campainha da casa de Clara incansavelmente.
Ainda com roupas de dormir, Maria correu até a porta na esperança de que fosse realmente algo importante, mas pelo que notou era apenas mais uma criança lhe pregando uma peça.
Como se já não bastasse a vida fazendo essa tarefa, Clara percebia que qualquer outra atividade ou atitude que fosse prazerosa para o outro, lhe causava certa repulsa, como um muro que a protegia, do que pessoas chamavam de diversão.
- Quanta falta do que fazer, seus desocupados! – Esbravejou Clara fechando a porta em uma só pancada.
Ainda esbravejando, Maria deu aquela respirada profunda, soltando o ar em um longo suspiro de insatisfação. Diante da pia do banheiro, olhou para frente e viu aquela menina. Aquela que carregava algo em sua face. Algo que lhe fazia diferente. Algo que realçada um passado peculiar. Um passado não muito memorável, mas não esquecido de vez.
Passando levemente seus longos dedos no rosto, cobriu seus olhos na esperança de não se encarar com tanto rigor. Pressionou contra seus olhos, suas mãos e enfim, depois de breves segundos, retirou-as na expectativa de fazer aquilo sumir.
Nada parecia ter mudado, e a sensação de frustração era mais dolorosa que ter que olhar para onde não gostaria. Clara se abaixou e sentou no canto esquerdo do banheiro. Murmurou algumas poucas palavras e esperou que o cansaço daquele lugar a tirasse de lá. Ao passar os minutos, a companhia foi apertada e o ânimo que não estava em Maria, se tornou uma obrigação de levantar e ir ver quem era. Já estava claro que ela foi se arrastando até a porta, contando que fosse mais uma criança lhe pregando uma peça. Estava pronta para jogar diversas palavras ruins ao ar, quando percebeu que não era nenhuma criança, e sim o homem, com roupa de policial, para sua surpresa. Seu coração gelou e então Clara pôde sentir aquele tal frio na espinha. Maria tinha certeza que não burlou nenhuma lei, e que não estava devendo a nenhuma entidade. Algo estava errado e ela não estava preparada, como qualquer um não estaria.
- Bom dia - falou o homem assim que Clara abriu a porta - A senhora é filha do senhor Mario?
Uma breve palpitação percorreu o corpo de Clara, e dava para notar que seus lábios estavam brancos, como neve.
- Sim, sou sim. - Respondeu Maria Clara sem querer parecer preocupada. - O que deseja?
O policial olhou por detrás do ombro dela a procura de algo. E antes que Maria perguntasse, ele a respondeu.
- Seu pai fez uma compra no último mês e notamos um erro de identificação dele. O nome dele consta no sistema, porém não só no nosso. Havia um outro Mario que faleceu há mais de 20 anos, em Portugal. E como seu pai fez uma compra externa, foi acionado lá e o nome é de um falecido. Queremos consultá-lo pra saber se é apenas uma coincidência, um mal entendido ou se ele está agindo de má fé com falsidade ideológica. A digital dele corresponde ao nome, porém, consta no sistema que ele fez essa identidade depois de adulto. Antes disso o sistema não mostra.
- Como assim? Você está dizendo que meu pai não é quem eu penso que é?
Essa foi uma das únicas vezes que Clara se colocou a disposição de defender o pai, por mais que não estivesse mais tão ligada a ele.
- Estou dizendo que preciso falar diretamente com ele e ver o que ele tem a dizer.
O policial não parecia um cara marrento como muitos parecem. Ele aparentava ser cauteloso e educado. Falou num tom baixo, e claro. Sereno e sem muitas ressalvas em palavras que talvez poderia dar ênfase.
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Em Memória
Fiction généraleComunicação não era lá uma das preferências de Maria Clara. Estabelecer amizades talvez também não. Era na suposta solidão que encontrava alguém de suma importância em sua vida, e com essa pessoa ela vivia e revivia cada lembrança de um passado dist...