TW: ( Alerta de conteúdo sensível sobre relacionamento abusivo)
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Novembro
Há uma gritaria lá fora, uma agitação incomum para uma sexta-feira à noite, uma aglomeração de garotas na calçada do hotel que vistas através das janelas do vigésimo andar, tornam-se apenas pontos indistinguíveis perdidos nas luzes bonitas de Chicago. Àquela altura, a cidade parece mais viva que nunca e isso também é um sinal claro da presença de Jungkook por aqui. As cores vindas de arranha-céus e holofotes brilhantes iluminam o quarto atravessando as cortinas, não me movo para fechá-las e sequer me sinto incomodada pela claridade externa que invade o espaço, é confortável apenas deitar nas cobertas macias e não me preocupar. Uma sinfonia toca através dos alto-falantes ao lado da cama, não sou boa em identificar melodias, embora aquela me pareça familiar, mas me permito ouví-la até o fim, e espero pelas próximas naquela playlist perfeita para o sono sem ousar pular uma faixa, e tudo parece mórbido ali dentro, quase um contraste com toda a agitação que parece tão distante agora, quase como se eu pudesse ignorar a existência de qualquer outra coisa lá fora, e até mesmo as luzes da cidade dançassem ao som daquelas notas. Num segundo, é como se eu fosse teletransportada novamente para aquela sala de móveis antigos na casa dos avós de Leandro, a mesma canção toca baixinho através de um speaker, o cheiro de flores silvestres e naftalina entorpece meus sentidos, posso ouvir sua voz gritando aquelas palavras para mim, cuspindo todos os meus erros, seu braço puxando o meu em um solavanco e os olhos completamente injetados de ódio, eu peço desculpas uma, duas, três vezes porque sei o que vai acontecer e mesmo assim, sua mão acerta em cheio meu rosto, fazendo o mundo ao meu redor girar, e todos os momentos bonitos, "eu-te-amos" e "pra sempre" ditos em algum momento de extrema lucidez vão sendo digeridos pela minha própria dor. É quase sufocante, e num impulso procuro os botões para pular aquela faixa, para tirar aquela lembrança de mim outra vez, soterrá-la em algum lugar onde os fantasmas de meu ex-namorado não sejam capazes de voltar para me assombrar, e finalmente consigo paralisar tudo por um segundo, até a voz de Jungkook ecoar pelo quarto quebrando o silêncio, quando sou trazida de volta à realidade.
— Noona? Estava dormindo? — Sinto um alívio por tudo não ter passado de um sonho ruim, a voz macia dele chamando meu nome quebra a sensação de irrealidade dos últimos minutos, e tudo que consigo ver são os seus contornos iluminados pelas luzes verdes e azuis que atravessam o vidro, o cabelo molhado de suor ao redor do rosto, as mãos apoiadas na cama, os olhos cintilando numa mistura de curiosidade e surpresa, tão bonito, daquele jeito único que ele consegue ser, e repito para mim mesma que estou segura, e que é só Jeon ali.
— Estava te esperando. — Respondo, enquanto o vejo se movimentar no quarto com as luzes ainda apagadas, ligando apenas o abajur lateral e comentando sobre como o show havia sido divertido, porém a sensação sufocante e as palavras de Leandro parecem nítidas, gritantes e brilhando em minha mente, não quero chorar outra vez, prometi que não faria aquilo de novo, não pelo mesmo motivo.
Você sabe que merece mais do que isso, Sofia, você sabe que merece mais!
Eu repito mentalmente como um mantra tantas vezes que as palavras acabam perdendo o sentido, me vejo prestes a chorar, e quando os olhos de Jungkook me encontraram através da meia-luz daquela luminária, eu simplesmente desabo.
— Noona? O que está acontecendo? — Fecho os olhos por um segundo e respiro fundo. Jungkook não sabe sobre o meu passado, não sabe sobre as cicatrizes causadas por Leandro e todos os fantasmas que eu carregava comigo durante todo aquele tempo. Não era culpa minha ou dele, mas ainda machucava muito.
— Tem algo que quero te contar... — As palavras viram um amontoado em minha garganta e tenho certeza que posso vomitá-las a qualquer momento.
— Quando estava no Brasil, eu namorei esse cara que te falei uma vez, o Leandro, lembra? — As mãos de Jungkook estão naturalmente mornas, apoiadas sob a única faixa de pele visível de meus tornozelos entre as meias e o tecido grosso de meu moletom, o seu rosto se contorce numa expressão de dúvida e então assente.
— Lembro.
— Bom, tem algo sobre ele que não contei.
A respiração de Jeon está fora do ritmo, imagino que sua mente esteja o levando a inúmeros pensamentos sobre o que possa ter acontecido: traições, brigas, términos malucos, mas tenho certeza que ele nunca havia pensado naquela maldita palavra, porque quando ela sai de minha boca, algo no rosto de Jungkook parece morrer juntamente com elas.
— Na época que namorávamos, ele... —Respiro tão fundo que meus pulmões doem a medida que as palavras se formam em minha boca e escapam dos meus lábios, detalhes que machucam até mesmo se repetidos em voz alta, Jeon parece completamente inerte, sua expressão perde o brilho e os seus olhos parecem completamente sem vida. Ele me olha, duas, três vezes.
Cada parte minha. Talvez procurando algo, alguma pista e tomado pelo medo de ainda assim, encontrar algo em minha pele. Leandro havia me agredido naquele dia na casa de seus avós, há dois anos, mas eu podia jurar que havia acontecido alguns minutos atrás. A dor ainda era a mesma, embora não fosse física, não mais.
— Você não consegue ver as marcas superficiais porque a minha pele está curada, Jeon... Mas talvez tenha algo em mim que ainda não está, essas feridas são como tatuagens, embora com um tempo se tornem invisíveis, sei que elas estão aqui... — Seus olhos estão fixos em mim, quase através de mim. Ele desliza os dedos em meu rosto, enxugando cada lágrima e me puxa para perto, tão perto que posso ouvir seu coração batendo sem nenhum compasso acertado. Me sinto acolhida, mas Jungkook se move rápido, em um segundo e caminha até sua mochila largada na porta do quarto, buscando algo lá dentro, seu estojo de desenhos, e o traz até a cama, soltando todas as canetas e lápis coloridos por cima do tecido de algodão. Com a ajuda das luzes do abajur, ele escolhe as cores, e a primeira, vermelho.
— Me dê sua mão...— Ele diz, com a voz tão suave e sussurrada, e sei que está prestes a chorar. Abro as mãos com as palmas voltadas para cima, e o observo.
— Noona, eu quero que leia cada uma dessas palavras e lembre-se de como você realmente é, e do amor que você merece... Todo dia! — A caneta vermelha desliza em minha mão direita, a palavra "Linda" surge num perfeito traço de sua língua nativa, em seguida, um beijo por cima das letras como se estivesse se certificando de que elas não escapariam de minha pele. Imediatamente, a outra mão, com a cor azul, a palavra "forte", seguido de outro beijo quente e demorado na derme.
As mãos de Jungkook deslizam até o meu moletom, em um pedido mudo para que possa tirá-lo e permito que o faça. Ele escolhe tantas cores dessa vez, e faz nascer flores, pétalas, estrelas em minha pele, subindo através de meu braço, costas, quadril, contornando meu corpo inteiro, marcando cada uma delas com seus lábios, tatuando-me. Palavras bonitas surgem em toda pele nua e disponível para ele, e não sou capaz de dizer nada. Ondas bonitas de um mar azul surgem em minhas pernas, peixinhos coloridos, de todos os tamanhos escorregam em meus dedos. Notas musicais contornam meus seios, subindo pela nuca, em cada lugar ferido e dolorido, e para cada palavra ruim, para cada gesto cruel de Leandro, há Jungkook com letras para minhas canções e rimas para meus poemas.
Um toque tão macio que posso derreter a qualquer momento.
Não há heróis essa noite. Existe apenas eu, Jeon, o universo que abrigo sob minha pele naquele momento e minha permissão definitiva para que ele possa me enxergar. Sinto-me corajosa por me mostrar inteira para ele, todas as partes quebradas e sem definição, os pedaços soltos e disformes, e para permitir que seu amor chegasse até mim, me fazendo de tela para sua Arte.
— Jeon... —
O interrompo, enquanto suas mãos estão ocupadas desenhando girassóis amarelos em meus pés.
— Eu te amo — A palavra ecoa pelo quarto, e os olhos dele cintilam através da meia-luz. É tudo verdade, eu o amo. Eu o amo muito. Sua boca encontra a minha, naquele momento em que me sinto perfeita e peço, silenciosamente à todo meu universo, que aquele momento nunca acabe.
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Hanami, 365 dias de Primavera.
Teen FictionAinda é estranho encarar o seu rosto na TV. Nem mesmo agora quando suas coisas estão embaladas e encaixotadas ao lado da minha cama e que reluto contra minha vontade de desviar meus olhos daquele amontoado de palavras sem significância e descobrir q...