Primeira Pétala (Os olhos mais doces que já vi)

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S O F I


Ainda é estranho encarar o seu rosto na TV.

Nem mesmo agora quando suas coisas estão embaladas e encaixotadas ao lado da minha cama e que reluto contra minha vontade de desviar meus olhos daquele amontoado de palavras sem significância e descobrir qual o motivo de sua felicidade, a TV permanece muda e vejo apenas fragmentos da sua luz clareando a sala naquela outra realidade, a que nunca fiz parte e que nunca me adaptei.

Algo em Jungkook mudou desde a última vez que nos vimos, talvez muito além do que eu consiga perceber enquanto o vejo de relance no canto da tela com todas essas luzes ao seu redor, mas sei que não se trata apenas de um corte de cabelo novo, uma cor diferente nos fios nunca experimentada antes e só consigo imaginar que seja essa a sensação natural de todas as coisas que se encerram de maneira abrupta, o sentimento estranho de que algo mudou e embora não consiga se sabe exatamente o quê.

Mas não quero olhá-lo assim, porque essa versão nunca foi minha e não tenho direito de pensar diferente, a distância que criei entre nossa vida e sua fama eram como linhas paralelas, realidades distintas demais para serem relacionadas. Gostava de pensar que o Jungkook teimoso, implicante e doce que tive acesso nos últimos anos, era uma nuance única e somente minha por direito, suas outras partes oferecidas mundo afora, pertenciam à paixões somente de outras pessoas.

São quase três da manhã e uma reprise das premiações de fim de ano segue sendo apresentada por algum motivo que não procuro entender, embora saiba que ele está na cidade, não sei porque continuo aqui, fingindo que sua presença do outro lado da tela não me incomoda e não me corrói em saudade. Gostaria ao menos de pensar que estava me esforçando para me adaptar a nova vida que não incluiriam suas voltas, embora não pudesse me distanciar tanto assim de sua presença na minha realidade. Não dessa vez. Suas vindas a Tóquio seriam constantes, mas seus retornos para os meus braços chegaram ao fim, em definitivo.

Alguém me disse uma vez que se leva metade do tempo de uma relação para superá-la, seriam setecentos e trinta dias até que ele se fosse por completo, mas queria incitar a desintoxicação precoce de meu organismo, me livrar de toda e qualquer parte que Jungkook amou. Enfiaria os dedos na garganta e o vomitaria do meu corpo, da minha alma, me livraria do cheiro da sua pele impregnado em minha memória olfativa, do seu gosto e do seu toque, até que tudo fosse desmaterializado e esquecido.

Durante o tempo do luto, ao menos, parei de fingir que as coisas estavam bem quando elas, de fato, não estavam. Os beijos, corpos e braços que tentei me adaptar de alguma forma pareciam lugares inóspitos para mim. Me colocava em modo silencioso por umas horas em alguma baladinha de Tóquio, mas era assombrada pela presença do amor quando retornava para casa. Via sua silhueta na sala como uma alucinação, perseguia o som dos seus passos inexistentes nas escadas, me revirava de um lado para o outro como se tivesse deixado um pedaço meu perdido em algum lugar inacessível. Demorava a pegar no sono, sem o seu calor me aconchegando no fim de um dia exaustivo, seu cheiro de banho recém-tomado, seu beijo de boa noite com gosto de hortelã.

Fechava os olhos e era atingida pelos flashes de memória em retrospecto, Jungkook e eu correndo por alguma rua vazia madrugada adentro, quase nunca completamente sóbrios, disfarçados como dois estranhos em um karaokê minúsculo de bairro, cantando canções com letras que nunca sabíamos de cór. Deitados no chão da sala, imaginando o futuro, a casa bonita pintada de amarelo, dois filhos, Berry e mais alguns bichinhos, e a calmaria de uma vida que dessa vez seria só nossa. Todos os eu-te-amos em sintonia como uma melodia composta pelas batidas de seu coração que ainda sinto como parte do meu.

Hanami, 365 dias de Primavera.Onde histórias criam vida. Descubra agora