Esta história não é sobre felicidade ou sobre a falta dela. Não é sobre vida ou morte. É provável que seja só sobre amor em várias formas, mas quem sabe. Pode nem ser sobre nada, na verdade, e está tudo bem. O que se narra aqui é passagem, é experiência, é mutação, tudo um pouco, sem nenhum motivo ou grande objetivo específico.
Quando algo não possui objetivo claro, a gente deixa passar partes importantes sem ao menos notar. Isso não é crime, é só o jeito que a maioria das pessoas leva a vida. Nunca é possível ver tudo. Quanto mais somos exigidos e quanto mais nos exigimos, menos detalhes observamos, menos sinais vemos mesmo que estes sejam tão visíveis quanto os mega anúncios na Times Square.
Assim, perdemos oportunidades. Em um espaço de dúvida, surgem os "e se..." da vida, os "talvez", as pendências naturais, por assim dizer. Não sei se você sabe, mas ninguém nunca tem certeza de tudo o tempo todo e, de verdade, tudo bem também.
Dizem que quando se convive com alguém, principalmente diariamente, é mais difícil de se perceber mudanças, sejam elas físicas ou de personalidade.
Essa é uma informação parcialmente verdadeira. Pense bem. Se uma pessoa fizer uma mudança física brusca, digamos que um corte de cabelo radical, todos ao seu redor vão notar que algo está diferente, mas se essa mesma pessoa resolver perder peso, por exemplo, esta mudança apenas será notada por olhos atentos, e somente comprovada com parâmetros para as medidas.
Contudo, algumas pessoas têm uma sensibilidade apurada. Elas notam mudanças, são atentas aos detalhes. Para essas criaturas especiais absolutamente nada passa em branco e esse olhar atento serve como ferramenta chave para que elas alcancem o topo. Assim é Miranda Priestly, especialmente com qualquer assunto relacionado ao seu projeto de vida, a sua revista.
Nada nunca passou despercebido pela abelha rainha da moda em sua colmeia. Com nada, aqui nos referimos a mudanças internas e externas de todos os seus funcionários, principalmente os que trabalham mais próximos a ela. Ao contrário do que todos pensam, La Priestly se preocupa sim com o bem-estar de seus colaboradores tão cuidadosamente selecionados, ela só escolhe fingir o contrário e tem seus motivos para tal comportamento.
A maior habilidade de Miranda é sem dúvida a capacidade de isolar fatores e tratar todos como detalhes. Esse é o mecanismo que torna sua mente algo tão brilhante em comparação ao resto do mundo, é por isso que nenhuma outra pessoa é capaz de fazer seu trabalho. Essa habilidade, também foi o fator responsável por ela perceber o início de tudo, o dia em que os olhos castanhos começaram a perder o brilho, o dia em que Andrea começou a perder seu ímpeto.
Andrea era a companhia favorita de Miranda em almoços, por exemplo. Não que a editora fosse algum dia reconhecer isso em voz alta, mas era quase motivador ver alguém realmente querer comer, não apenas beliscar, era diferente ver alguém aproveitar comida como fonte de felicidade em cada garfada, até que a fome da jovem começou a diminuir de maneira significativa. Ela passou a beliscar, menos até que todas as outras pessoas. Com o declínio veio o aumento do consumo de bebidas alcoólicas, que embora discreto e sem grandes efeitos físicos era algo preocupante.
Logo o peso começou a diminuir, quase que proporcionalmente ao aumento das bolsas debaixo dos olhos que não desapareciam por completo nem com os melhores produtos disponibilizados pelo departamento de beleza da empresa. Andrea foi diminuindo seu ritmo sem nem ao menos se dar conta, sem nem ao menos saber que alguém a estava observando de perto sem gostar de absolutamente nada do que via. As coisas precisavam mudar, e rápido, antes que se perdessem de vez.
Miranda por um par de semanas fingia que não estava percebendo nada, mas o que ocorreu foi exatamente o contrário, ela começou a prestar ainda mais atenção na jovem. De sua maneira, ela começou a dar sinais de que notara as mudanças a fim de ter algum tipo de resposta. Agora, ao invés de dar um milhão de ordens, ela enviava e-mails para Andrea e a chamava em sua sala como lembrete de que ela deveria abrir o inbox para verificar o que deveria ser feito. A jovem já não conseguia se livrar do semblante cansado. Estava decidido, Miranda tomaria uma atitude e seria logo, já que a resposta aguardada com a sua tentativa de estímulo nunca veio.
O que mais assustava nesta nova Andrea era o fato dela não sorrir mais, para ninguém e sobre nada. Ela parecia estar nos lugares apenas com seu corpo, enquanto sua mente vagava por um limbo de dormência dos sentimentos que antes demonstrava com frequência e de maneira quase que transparente.
Já era fim do expediente quando Miranda resolveu que seria o momento certo para ter uma conversa com sua assistente. Todos já haviam partido exceto as duas, Miranda por ter ficado presa em uma conferência e Andy por ter que esperar pelo livro. Ela usaria a sua tática de guerra, iria direto ao ponto sem rodeios. Ela não tinha certeza se funcionaria, se conseguiria arrancar alguma informação útil da outra mulher ou se teria sequer uma reação qualquer, mas precisava tentar. Essa era a decisão mais drástica, ainda assim menos invasiva a privacidade da assistente e as opções eram essa ou contatar o RH.
"Andrea."
Em poucos segundos a jovem adentrou o santuário da editora com bloco e caneta em mãos.
"Encoste a porta e sente-se. Preciso falar com você em particular." Miranda soltou as palavras da forma mais macia e menos amedrontadora que conseguiu. A morena levantou os olhos e notou que sua chefe não estava em sua mesa, conforme o usual, mas sim em um dos sofás na lateral da sala.
Mesmo com a tentativa de expressar calma, a mulher de cabelos curtos pôde notar a respiração da assistente tornar-se irregular instantaneamente. Visivelmente trêmula, Andrea fechou a porta e arrastou seu corpo até o outro sofá, sentando-se fisicamente o mais distante possível de Miranda.
"O que vai acontecer agora é sem precedentes, mas tempos desesperados pedem medidas desesperadas."
Nesse momento Andy esforçava sua mente a repassar o dia de trabalho com mais detalhes possíveis, precisava saber o que tinha feito de tão errado para fazer Miranda admitir a necessidade de uma medida desesperada. Nada lhe vinha à mente, a respiração lhe traiu ainda mais.
"Andrea, eu sei que nós não somos amigas. Tenho plena noção do meu status de inalcançável, principalmente em relação ao meu staff. Apesar do meu posicionamento distante, nas últimas semanas eu notei uma mudança não positiva no seu comportamento e de certa forma isso está impactando no seu rendimento. Nós duas sabemos que eu não sou o tipo de chefe que conversa ou que tolera justificativas para incompetência, mas por você já ter se mostrado capaz de fazer esse trabalho com maestria é que eu resolvi, desta vez, fazer uma abordagem diferente. Você está com problemas e isto está claro, o que preciso saber é como vamos resolvê-lo, isso por dois motivos simples. O primeiro é que eu preciso manter por perto o melhor time possível e no momento você não é parte dele. O segundo motivo é que você demonstrou um potencial imenso e seria um desserviço para nós se eu permitir que você desperdice. Não preciso que você me diga nada se não quiser, mas quero que saiba que pode...contar comigo."
Assim que Miranda terminou sua última palavra, um soluço escapou dos lábios de Andrea. Por mais que ela estivesse tentando conter o choro, seus ombros tremiam. Ela, incapaz de se segurar por mais um segundo sequer, apenas levou as duas mãos a boca na tentativa de abafar os sons que não conseguia impedir.
Miranda passou uma das mãos pelo cabelo, relutando por alguns segundos antes de se levantar, pegar uma garrafa de água em seu frigobar e se sentar ao lado da jovem. De maneira desconcertada ela alisou as costas da jovem em círculos enquanto murmurava que tudo ia ficar bem.
Era a primeira vez em muito tempo onde a editora se via no papel de confortar alguém que não fosse uma de suas filhas. Ela já não sabia mais como fazer isso, mas era algo necessário no momento e então ela se permitiu. Tinha certeza que esse seria mais um momento que ficaria entre as duas, assim como a noite em Paris onde Andrea lhe vira em um momento de vulnerabilidade.
Quando a jovem se acalmou um pouco ela lhe ofereceu a garrafa de água. Depois de alguns goles Andrea murmurou um "Obrigada" e Miranda apenas meneou a cabeça como quem diz 'não por isso'.
"Já tivemos demonstrações de sentimentos demais para uma noite e eu ainda tenho uma reputação de coração de gelo para zelar." Miranda disse ao se dar conta que os próprios olhos estavam marejados, com um leve tom de sorriso e uma pitada de sarcasmo na voz.
Andrea deu um meio sorriso e se retirou da sala. Poucos minutos depois ela já estava recomposta e de volta a sua mesa, disparando uma mensagem para Roy e ordenando mentalmente o que faria enquanto esperava pelo Livro.
Depois que Miranda saiu, a jovem ficou sentada inerte por algum tempo sorrindo para o nada. Do sorriso veio um riso contido que logo entrou em erupção até resultar em uma gargalhada genuína, sua primeira em muito tempo.
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Uma Lua Por Vez
FanfictionQuando Andrea começa a agir de forma estranha no escritório, Miranda decide saber a causa da mudança e acaba descobrindo que existe muito mais escondido do que os olhos castanhos deixam transparecer. *** História originalmente postada em 2019, part...