IV - "O pequeno grão de nada no universo"

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O dia amanheceu cinzento e escuro. Estava mais frio que o normal, ou pelo menos foi assim que Miranda o sentiu ao despertar, antes mesmo de abrir os olhos. Eram cinco da manhã, horário habitual para a editora levantar e começar a se preparar para mais um de seus longos dias. Por vezes, existia aquela vontade íntima de ficar na cama um pouquinho mais, como qualquer ser humano normal, mas logo ela se lembrava de quem era aos olhos do mundo e se levantava, impassível, com os lábios torcidos em um bico torto em direção ao seu primeiro café do dia, antes de acordar as filhas.

Nesta manhã em especial, não existia vontade de enfrentar o mundo, existia apenas o sentimento de impotência, a ausência da capacidade de resolver o problema da jovem que deixara repousando no quarto de hóspedes. Ela não estava acostumada a se sentir impotente, parecia que tudo que havia conquistado ao longo dos anos ficava pequeno diante dessas situações, quase que um lembrete de que ainda era humana e que, na verdade ela não tinha domínio nenhum sobre a vida, nem a sua e nem daqueles que a cercavam, incluindo suas preciosas filhas. 

A desagradável a sensação de ser colocada em seu devido lugar de pequeno grão de nada pelo universo, era com isso que Miranda lidava esta manhã. Mais um bico torto para o nada.

Depois de alimentar Andrea, Miranda lhe entregou uma muda de roupas para que a jovem pudesse ficar mais confortável. Havia um pavor no fundo do olhar castanho, quase como uma criança pedindo por socorro de forma muda e o pior é que Miranda entendia a necessidade de deixar que a morena viesse até ela, não seria de ajuda alguma dizer algo como 'olhei seu celular e vi que você namora um cafajeste, se você quiser eu posso mandar matá-lo ou fazer isso com as minhas próprias mãos', ela só tinha que estar pronta para quando o pedido de ajuda viesse.

Mesmo depois de tomar um banho e colocar o pijama de seda mais confortável de sua vida, Andy se sentia como uma intrusa.

"Miranda, ainda acho que eu deveria ir para casa." O coração da mulher mais velha palpitou ao se lembrar das palavras na mensagem que havia lido mais cedo.

"Não seja tola, Andrea. Você precisa descansar e vai ficar aqui, pelo menos esta noite." Ela falou em tom de quase indiferença, tentando parecer o mais Miranda Priestly possível. "E, além disso, esse quarto é um dos melhores para dormir... com certeza você vai ter uma boa noite de sono aqui. Amanhã, depois de um café da manhã reforçado e uma visita ao médico nós resolvemos como agendar o resto do dia." Andy apenas concordou com a cabeça, seus olhos começavam a pesar.

"Obrigada por tudo, Miranda. Boa noite." Ela murmurou observando Miranda se levantar da beirada da cama, dando o assunto por encerrado do jeito dela.

Miranda caminhou até a mesinha de cabeceira, pronta para apagar a luz, mas ao notar a jovem tencionar ela simplesmente diminuiu minimamente a intensidade da luz, deixando ainda o suficiente para se ter uma boa visão do ambiente.

"Não se preocupe em despertar cedo. Durma bem, Andrea. Bom descanso e até amanhã." A editora saiu do quarto jogando as palavras por cima dos ombros, não queria que a assistente visse o inevitável olhar de pena em seu rosto.

Miranda caminhou pelo corredor ainda sonolenta e ao passar pela porta do quarto de Cassidy notou a porta entreaberta. Ao abrir a porta mais um pouco, não pôde deixar de sorrir com o que vira. Na cama auxiliar, Caroline dormia praticamente jogada em Andrea, que segurava firme a mão de Cassidy dormindo na cama de cima. Aparentemente elas tinham pego outro colchão extra para colocar na cama auxiliar, como se tentassem deixar a cama quase que da mesma altura. As três dormiam pesadamente, como se já tivessem feito isso um milhão de vezes.

Não demorou muito para Miranda decidir que este seria um dia diferente.

Caminhou silenciosamente até a mesinha com o relógio despertador e cancelou o alarme. Perder um dia de escola não mataria ninguém, além do fato da noite ter sido inesperadamente agitada. Na gaveta ela pegou um lápis e um papel qualquer, rabiscando com sua caligrafia perfeita uma mensagem para suas queridas... "Resolvi deixar que dormissem um pouquinho mais hoje, mas não se acostumem. Quando acordarem o café da manhã estará pronto. Até mais, minhas meninas!" e sim, isso incluía Andrea, para surpresa da própria Miranda. Ela resolveu que não pensaria muito, mais uma coisa para não pensar no momento. Ela estava ficando boa na arte de fingir que coisas importantes não importavam.

A editora se permitiu ser apenas uma mãe normal por algumas horas. Preparou as panquecas e a calda de frutas vermelhas favorita das gêmeas, cortou algumas frutas e deixou a mesa pronta com pães e bolos para que todos pudessem desfrutar de tudo quando acordassem. Conhecendo suas filhas, elas não acordariam muito tarde e prontamente fariam Andrea despertar também.

 Miranda decidiu que se ocuparia com o Livro enquanto esperava todo mundo acordar. Pegou uma xícara de café, um bloco de post its, sua caneta vermelha favorita e se aconchegou em travesseiros, sentada em sua cama com os óculos na ponta do nariz. Ela não se preocupou com o cabelo amassado, ou em colocar maquiagem por ter alguém que não fosse da família em casa. Se fosse para ser sincera, era como se o quebra-cabeças estivesse completo pela primeira vez em sua vida, e isso não fazia o mínimo sentido. Ela refletia até ser interrompida por uma cabeleira ruiva invadindo a fresta da porta de seu quarto.

"Mamãe?"

"Bom dia, meu bem." Ela sorriu pelos olhinhos sonolentos e pela cara amassada da filha. Ela fez sinal para que a menina entrasse e assim que a porta foi empurrada pôde ver uma Andrea completamente envergonhada sendo puxada firmemente de maneira cômica pelas duas crianças. Logo ela estendeu os braços e recebeu abraços e beijos das duas e então todos os olhos se voltaram para Andy, de pé no meio do quarto parecendo desejar o poder da invisibilidade mais do que qualquer outra coisa naquele momento.

"Bom dia, Andrea." Miranda disse sorridente, enquanto sentia um abraço apertado das suas crianças. "Dormiu bem?"

"Andy teve um pesadelo de noite, mamãe." Cassidy soltou antes que a jovem assistente pudesse dizer algo. "Mas nós cuidamos dela." Caroline completou, no estranho modo que elas tinham de completar as falas uma da outra.

"Bem, se vocês cuidaram dela deve ser mais um motivo para tomar um café da manhã reforçado. O que acham? Deixei algo especial preparado na cozinha esperando por vocês."

"PANQUECAS!" Foi a resposta das gêmeas, que já saíram em disparada fazendo com que suas passadas fossem ouvidas de forma estrondosa pela casa.

As mulheres sorriram pela reação das meninas e a mais velha logo se levantou, parando próxima a assistente.

"E então Andrea, dormiu bem? Minhas filhas não te deixaram responder antes."

"Dormi muito bem, apesar do pesadelo que as meninas comentaram. Eu não ando dormindo muito bem então posso dizer que essa noite foi revigorante.

Miranda apenas meneou com a cabeça e indicou a porta. Andrea entendia a maneira por vezes estranha da mulher conduzir as coisas. Elas desceram as escadas e na ilha da cozinha encontraram pratos com pilhas enormes de panquecas.

"Andy, você precisa provar isso! As panquecas da mamãe são as melhores do mundo todo!"

A jovem sorriu pela empolgação das crianças com algo simples como panquecas, então se lembrou que a vida delas não era simples, que a mãe delas estava longe de ser simples e que elas provavelmente realmente já deveriam ter comido panquecas no mundo todo para saber que aquelas realmente eram as melhores. 

Após ver Miranda pegar um dos pratos servidos sem se importar com a quantidade gigantesca de calda, Andrea também pegou um prato para si sem contestar muito.

Realmente, as panquecas eram as melhores que já havia provado na vida e seu gemido de aprovação deixou sua chefe com certo ar de orgulho no olhar. 

"Fico feliz que tenha gostado das panquecas, Andrea. Você precisa se alimentar bem." Antes que ela pudesse responder Miranda rebateu. "Não, não, isso não foi uma pergunta. Apenas coma, sim?"

"Sim, Miranda!" Foi tudo o que ela foi capaz de dizer antes de dar mais uma mega garfada, fazendo exatamente como Cassidy e Caroline, e arrancando um riso de todos.

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