Capítulo 1

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A luz do sol atravessava os vitrais coloridos dando um tom alegre a sombria sala do trono. Valentina gostava dessa hora do dia, o povo caminhava pelo extenso tapete vermelho, se aproximavam de seu avô e expunham suas dificuldades para que o Rei os ajudasse, para que desse a melhor solução aos seus conflitos. Rei Augusto era bondoso e paciente na maior parte do tempo, mas, quando a situação exigia, também sabia ser duro e obstinado.

- Por hoje basta, Vossa Majestade agradece a presença de todos e roga para que voltem para sua casas com saúde e paz. - A voz do Conselheiro Real se fez bradar por todo salão.

Aos poucos os aldeões caminhavam até a frente do trono, inclinavam-se em sinal de respeito ao Rei e se retiravam do salão. Rei Augusto já estava bem idoso e o cansaço claramente tomava-lhe o corpo.

- Vamos Augusto, você precisa descansar agora, já não mais um menino. - Larissa, o amor tardio do Rei o ajudou a se erguer do trono.

- Valentina, minha neta, você nos acompanha? – Rei Augusto se dirigiu a jovem que permaneceu ao seu lado durante todo o tempo em que as audições ocorreram, ouvindo-a atentamente antes de solucionar cada situação apresentada pelos aldeões.

- Certamente, vovô. – A voz aveludada foi acompanhada de um quase sorriso.

Valentina de Lurton, princesa de Artena, era uma jovem bela, seus traços perfeitos e o corpo esguio lhe davam um ar altivo, os cabelos escuros lhe caiam até o meio das costas e combinavam perfeitamente com seus olhos, escuros como uma noite sem luar.

A princesa não era uma jovem comum. Durante boa parte da sua infância, mesmo que jamais tenha ouvido abertamente algo que pudesse lhe indicar tal fato, sentia que os aldeões mais velhos e até alguns nobres a olhavam de forma desconfiada, e ela sabia os motivos, sua linhagem.

Quando completou dez anos, Valentina decidiu que precisava mudar isso; pediu ao avô para, sempre que possível, acompanha-lo nas audições aos aldeões e também em suas viagens para reunir-se ao Conselho da Cália; quando a peste novamente se alastrou pelos reinos, Valentina, então com doze anos, se uniu as equipes de ajuda; quando em algum evento lhe pediam voz, ela era sempre ponderada em suas respostas; e, dessa forma, conquistou a todos, inclusive  aqueles que um dia a olharam desconfiados. Agora, as vésperas de completar dezoito anos, a respeitavam e lhe pediam sempre opinião.

- Valentina, você se saiu muito bem hoje, a sua solução para a questão do ferreiro e sua esposa foi perfeita! Estou muito orgulhoso de você. – Rei Augusto se dirigiu a neta enquanto se acomodava na larga poltrona da antessala do cômodo real.

- Obrigada, Majestade. – Valentina agradeceu fazendo uma pequena mesura.

- Sente-se aqui perto do vovô, preciso conversar algo sério com você.

- Sim, majestade.

Valentina se aproximou e acomodou-se em uma cadeira colocada próxima a poltrona, normalmente Larissa ficava ali, de mãos dadas com seu avô, cuidando e acarinhando seu amado, mas não nesse momento; ao mesmo tempo em que Valentina sentava-se Larissa retirava-se do recinto. E quando isso acontecia, Valentia sabia, o assunto era sério.

- Larissa, minha amada, por favor, avise aos guardas e ao conselheiro que não quero ser perturbado.

Rei Augusto aguardou que estivessem sozinhos, pegou carinhosamente a mão da neta e começou a explicar.

- Meu amor, minha luz, minha netinha, o vovô está ficando velho e sem forças, não demora muito e a hora de partir chega.

Valentina o olhou séria, os olhos marejados de emoção.

- Não fale assim, vovô, você ainda terá muitos anos pela frente.

- Não, sinceramente eu espero que não. Se eu ainda fosse forte e saudável, mas pra mim está cada vez mais difícil, eu fico cansando com facilidade, perco muito vezes o foco do assunto, meus olhos já não enxergam com nitidez e nem sempre consigo pensar nas melhores soluções para os aldeões ou para o Reino. Nos últimos anos foi a sua presença ao meu lado que me deu forças, seus conselhos, por muitas vezes, foram a solução perfeita para algum entrave...

- Vovô, eu só pude fazer isso por saber que o senhor estaria ao meu lado, que se eu cometesse algum erro o senhor me corrigiria...

- E corrigi muitas vezes, mas atualmente quem tem me corrigido é você. Você tem sido meu braço direito, minha conselheira. Você entende o que nosso Reino e seu povo precisa, você é justa, o povo te adora...

- Vovô, do jeito que está falando parece que vai morrer amanhã, está me deixando preocupada!!! - Valentina apertou com força a mão que segurava na sua.

- Não, provavelmente não, minha neta. - Um sorriso doce surgiu nos lábios do Rei Augusto. - E é por isso que te chamei aqui. Você será, muito em breve, a nova Rainha de Artena. Seis meses após o seu aniversário de dezoito anos você será coroada, estando eu vivo ou não. - O olhar sério do Rei Augusto não deixava espaço para argumentações, mas, mesmo não sendo comum em Valentina, ela o fez.

- Majestade! - O tom grave e aveludado da voz de Valentina soou quase como um sussurro. - Vovô, eu fico muito orgulhosa por saber o quanto confia e acredita em mim. Mas vamos deixar a vida seguir seu curso natural, não tem porque adiantar as coisas.

- Minha Princesa! - A voz do rei Augusto não escondia sua emoção. - Mesmo que eu pudesse mudar de ideia a sua resposta só me deu mais certeza da minha decisão. - Uma lágrima furtiva  correu pelo rosto do Rei e foi capturada por um suave beijo de Valentina. - Ah! Minha querida e amada neta. Você me lembrou tanto sua mãe agora, a forma de falar, a firmeza. Como é possível serem tão parecidas e ao mesmo tempo tão diferentes? Eu sinto muito falta da sua mãe, eu a amava demais, sei que cometi erros com ela, talvez a tenha mimado demais, mas eu amava, se errei foi por excesso de amor.

- Não fique assim, vovô, eu tenho certeza que ela sabe disso. - Valentina respondeu com um quase sorriso.

Valentina nunca sorria abertamente, ao menos não quando havia pessoas por perto, bem, menos com uma, mas esse era um caso especial e secreto.

- Sim, eu creio que sim. - A dor nos olhos do Rei Augusto era indisfarçável.

- Não gosto de vê-lo triste, vovô.

- Não estou triste, apenas saudoso, coisa de velho. - Rei Augusto sorriu. - Agora preciso descansar, peça pra Larissa entrar, por favor.

Valentina se levantou e beijou a fronte do avô com suavidade, apesar de seu semblante não demonstrar nenhuma emoção seu corpo tremia de ansiedade. A partir de agora cada dia era um dia mais perto de poder dizer em alto em bom som o que mais ansiou em sua vida inteira.

- Valentina!!! - Rei Augusto a chamou antes que as portas pesadas do cômodo real se abrissem.

- Sim, Majestade!

- Anunciaremos sua coroação em seu baile de aniversário, assim toda Cália poderá se preparar para o evento, para a chegada da nova Rainha.

- Sim, Majestade! - Valentina fez uma pequena reverência e saiu do cômodo.

Naquela noite, sozinha, deitada em seu leito, aguardou a chegada daquele vulto tão amado com ansiedade. Em oito meses ela seria a nova Rainha de Artena, e isso seria só o começo.

ValentinaOnde histórias criam vida. Descubra agora