Cidade de Estrelas

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Eu imaginei diversas vezes como seria sair do hospital desde que Suzana tinha contado sobre minha alta. Conhecer a família e os amigos do Benjamin, ver lugares diferentes... Será que eu me lembraria algo do que se passou em minha vida antiga ao rever as ruas da cidade de Niterói? Talvez as que estivessem longe das janelas deste hospital público me trouxessem alguma coisa. Era tão frustrante saber o que eram as coisas do mundo ao meu redor mas não conseguir lembrar das experiências passadas com elas.

Suzana certa vez me disse que isso era culpa da área afetada no cérebro pelo atropelamento. Minhas memórias mecânicas, aquelas que armazenam informações básicas de sobrevivência como coordenação motora, noção da realidade e até linguagem ficavam em algum lugar mais profundo do meu cérebro do que minhas vivências. Inclusive, ela chegou a comentar que isso era raro de acontecer, chutava que eu devia ter sofrido algum trauma psicológico antes de sofrer o acidente. Era como se minha cachola tivesse entrado num tipo de greve, se recusando a acessar essas memórias. Ao menos, foi o que consegui entender mais ou menos. Ela usou uma linguagem médica complexa ao me falar isso, sobre tipos de neurônios; e não tinha o menor jeito para explicar aquilo a um leigo.

De uma forma ou de outra, sair continuava sendo ameaçador e excitante ao mesmo tempo. Naquele dia, assim que Benjamin saiu, Suzana voltou para o quarto, querendo ver como eu estava. Ela hesitou no batente da porta, mas assenti para que entrasse. Menos de um segundo depois, estava me dando um abraço de urso.

— Não se preocupe, minha menina, onde você estiver eu vou atrás para ver se tá bem. Não honraria minha profissão se abandonasse uma paciente tão legal por aí sem saber para onde ir, pior que essas grossas que às vezes preciso atender.

— Isso não me parece tão profissional assim. — Comentei rindo. — Adoraria que me visitasse. Mas não precisa se preocupar tanto, o Benjamin fez questão que eu fosse para a casa onde mora. Já tinha até falado com os parentes e tudo!

Ela arregalou os olhos fundos:

— Nossa! Poxa, ele tá mesmo empenhado em te ajudar! Bem, melhor assim Só pegar o endereço com aquele moleque... E ai dele se for um mal-anfitrião.

Eu ri.

— Tenho certeza que não será, Suzana. Eu confio nele.

Eu posso ter dito isso, mas uns três dias depois, ao vê-lo saltar de um carro popular para me buscar, tremi na base. Enquanto ele assinava uns papéis achei melhor aguardar sentada. Helena veio passando com o carrinho de comidas para distribuir nos quartos convenientemente.

— Não fica com essa cara! Toma um pouco de água.

Eu bebi e sorri agradecida.

— Sossega! Semana que vem e nas próximas você vai ter que voltar para o acompanhamento neurológico. — Falou com uma piscadinha. Era um bom argumento.

Antes que eu pudesse responder me chamaram no balcão. Ela me deu um sorriso encorajador e seguiu na direção dos quartos e enfermarias onde não havia entregado a comida ainda. Precisavam que eu confirmasse ciência pela minha alta ou algo assim. Assenti mas declarei que não tinha como assinar nada pois não lembrava do meu nome. As mãos também permaneciam ainda um pouco calejadas, o suficiente para ser impossível marcar minha digital. A secretaria digitou algumas coisas em seu computador então, e me liberou.

Benjamin me deu o braço e eu olhei para trás. Nem dava mais para ver meu quarto, só a recepção cheia do hospital, com diversas pessoas, umas preocupadas, outras comemorando a melhora de algum "ente", outras entediadas... Era incrível como várias histórias totalmente diferentes conseguiam se cruzar nos lugares mais aleatórios. Tantas histórias e eu aqui, prestes a começar a minha do zero total depois de adulta.

Estrelas PerdidasOnde histórias criam vida. Descubra agora