Fiquei alguns minutos encarando aquele corredor. A porta ainda estava aberta de quando os cavaleiros entraram. Não dá pra limpar o sangue das cabeças deles das adagas agora. É hoje que me despeço delas e, francamente, é bem capaz de eu morrer também, o que tornaria o nobre sacrifício de Elena um completo desperdício. É uma pena mesmo. Os olhos dela, que antes pareciam estar fixos em mim, agora parecem fitar o corredor. Inspirar e expirar. Um cavaleiro e um dos magos mais poderosos da atualidade. Nada de bom vai vir disso.
- Acabaram os joguinhos, meu jovem?
- Como assim, Cross? Da última vez que contei, eu estava vencendo. Pra quê mudar agora? - Os mesmos olhos frios de antes. Do que é feito esse homem?
- Devo admitir que o seu disfarce me enganou. Não existe um Milark Antoniete então. Quem é você? - Aquele livro aberto, a pressão. Como vencer ele?
- Vincent Grinn, ao seu dispor.
- Hmpf. Nunca ouvi falar. Richard, se livre do lixo, por favor - e Oswald Cross deu as costas. Toda aquela pressão e o homem simplesmente não ia nem me assistir morrer. Filho da... isso não vai ser assim.
Nem eu acreditava num arremesso daqueles. A adaga girando no ar, hipnoticamente, tão perto das mãos do cavaleiro, mas infinitamente distante, passando direto por ele. Não consigo ver o desespero de Richard, mas imaginar é um deleite por si só. A rota retilínea, com ponto final bem na nuca de Oswald Cross. Só preciso correr o máximo possível agora. Ele olhou pra trás no instante final, com olhos esbugalhados. Meu sorriso se abre, descontrolado. E a adaga some, se desfaz em fragmentos minúsculos e irreais. Não era susto. Era raiva. Minha satisfação, estampada na minha face, ainda nem tinha ido embora quando ele apareceu a centímetros do meu rosto.
- Quem foi que te deu a ilusão de que poderia me matar com um truque sujo desses? Onde anda aprendendo essas coisas? Quem te fez pensar que teria o direito de tentar me ferir? Ajoelhe-se! - a voz dele era incisiva, imponente. Seus dentes cerrados me davam as piores sensações do mundo. Pavor. Impotência. Desesperança. E como se alguém estivesse empurrando os meus ombros para baixo, eu me ajoelhei perante ao mago, calado e obediente.
- Richard, saia daqui. Está dispensado por hoje. Não falhe em parar um ataque como esses da próxima vez, ou sabe o que acontecerá com você. - o cavaleiro deu as costas e foi embora. Simples assim - Mantenha os olhos em mim, garoto! - e como se nada mais importasse, fixei meus olhos nos dele. Tinha algo naquele livro, alguma magia perigosa até demais. Era como se uma presença, além do mago e eu, estivesse aqui, nesse corredor. Um poder terrível que rebaixaria qualquer adversário. Um artefato lendário, feito pelas mãos do próprio Crown.
- Seu merda... Tá usando coisa da concorrência agora? - foi meu momento, me desculpe. Quando você estiver frente a frente com a morte, tudo o que dá pra fazer é uma piada. Ele até deu um sorrisinho.
- Não estou usando nada que não seja meu por direito, criança. Levante-se!
- E o que você quer agora, Cross? Vai querer um beijo? - ele não conseguia me mandar calar a boca, pelo menos. Talvez eu consiga matar ele de tédio.
-Queime!
Nada daquilo era real, eu sei. Era apenas uma ilusão. Mas eu senti tudo. Cada milímetro da minha pele queimando na mais quente das chamas. Cada músculo meu estalando e fritando. Eu sei o quanto eu gritei, mesmo que meus próprios tímpanos ardessem em fogo. Não durou mais que três segundos, mas eu desejei morrer, pois durou uma vida inteira. E quando meus joelhos tombaram, ele me mandou ficar de pé, e eu fiquei, mesmo quando ele me mandou queimar de novo e de novo. Manter a consciência estava ficando cada vez mais impossível, até que ele percebeu isso e ordenou que eu ficasse acordado. Agora eu conseguia ver a sombra, cobrindo o corpo de Oswald e todo o corredor, segurando o livro com ele. Com que tipo de coisa o mago Crown lidava? Talvez ele não fosse o grande mago que todos pensavam que fosse, não o gênio benevolente a quem dedicavam escolas. Porque com uma arma daquelas, nenhum homem está bem intencionado. E se o Estilhaço de Mentira era o maior de seus artefatos, que tipo de arma era? As dúvidas disputavam lugar com a dor e nada mais era claro.
- Sabe o porquê de ainda estar vivo, garoto? - mas eu não tinha resposta, claro. Não conseguiria falar, mesmo que tentasse. Os ferimentos não eram reais, mas a dor era verdade o suficiente pra mim. Sinceramente, o livro era até milagroso, eu já estaria inconsciente a essa hora. Só que o tipo de milagre dele não era o tipo bom - Ouça-me, por favor. Você não concorda que o mundo tem gênios demais? Entenda, no tempo de Crown, já existiam muitos gênios, mas eram poucas pessoas. O resultado disso? Todos os grandes homens eram conhecidos. Todos os gênios eram respeitados e entravam para a história! O que se tem hoje em dia, Vincent? Um conglomerado de grandes homens, reduzidos pela massa de gente medíocre. É o meu dever mudar isso, como o grande homem que sou. É meu dever dar o merecido destaque às lendas de agora, não concorda?
- Vai fazer isso matando homens medíocres? Não fala merda! Foram os homens medíocres que te colocaram no pedestal que você está agora!
- E esse pedestal de agora não significa nada pra mim, garoto. Eu estou apenas vivendo à sombra de outro gênio. É apenas ao legado de Crown que sigo, e é aqui que você entra - eu já não estava entendendo mais nada. Ele não me mataria? Quando foi que ele decidiu que eu seria útil? - Você está procurando os artefatos do mago Crown também, não é? - fiz que sim com a cabeça. Comecei a sentir que estava voltando a controlar o meu próprio corpo. Não é como se ele tivesse me paralisado de verdade, mas... o que ele fez com a minha mente não foi normal. Aquele poder não era normal. Perto dele, quem era Abigail? Não passava de uma gostosa num bar que gostava de brincar com homens. Isso aqui era o verdadeiro poder de um mago. Era isso que, agora, eu temia - Bom, quero que continue o trabalho. É claro, você não contará para Abigail sobre nada disso, estamos entendidos? Você vai voltar pra casa, preparar as suas coisas e partir, garoto. Você trabalha pra mim agora. Vai buscar os artefatos do Crown pra mim e assim, quem sabe, nunca mais precisará me enfrentar de novo.
- Me mata logo de uma vez, grande homem. Essa farsa não vai durar muito e não é como se eu confiasse em Abigail, de qualquer jeito. Não contaria a ela sobre isso aqui nem que ela arrancasse os meus braços.
- Esse é o espírito. Muito bom. Mas eu não dei a você o direito de me questionar. Você não fará isso de novo, estamos entendidos? - e era a primeira vez que ele me forçava a usar a voz.
- S-Sim, senhor - mas que porra de poder é esse? Eu vim aqui pra isso? Pra descobrir o quão invencível esse homem é? Pra descobrir sobre um plano estúpido de genocídio? Não foi pra isso, eu vim pra matar esse cara, não pra virar um escravo, um peão no jogo de dois magos! Que merda! Por que isso tá acontecendo comigo?
- Por fins de confirmação: qual era a sua missão dada por Abigail?
- Matá-lo para que você não atrapalhe as buscas de Abigail sobre o Estilhaço de Mentira - foi tão fácil falar. Essa língua não me pertencia? Precisaria de muito mais esforço pra me fazer falar! Eu vou matar esse homem! Não por causa da porra de uma missão! Não será hoje ou amanhã, mas... Eu vou matar Oswald Cross, nem que seja a última coisa que eu faça!
- Interessante, eu não sabia que ela buscava o Estilhaço, ou mesmo que soubesse da existência dele. Bem, como ela descobriu não me importa muito. Ajoelhe-se!
E eu ajoelhei. Olhei, de relance, para Elena. Aqueles olhos, fixos em mim. Acho que essa é a primeira vez que me arrependo verdadeiramente de ter matado alguém. Ela poderia ter sido de grande ajuda. Ou, pelo menos, sofrido junto comigo, pois é sempre melhor sofrer com companhia.
- Queime!
E eu queimei, mais uma vez. A dor não diminuiu nem um pouco. O costume não veio. A minha determinação interior se foi também. Enquanto encarava mais uma vez o homem, notei mais uma vez a sombra que afogava todo o corredor. Oswald Cross não usava uma cartola. Minha consciência não aguentou mais muito tempo e tudo foi ficando escuro, finalmente. Um pouco de descanso.
Agora, caminhe até a sua casa e repouse. Reúna seus recursos e vá, Vincent Grinn. Reúna os artefatos de Crown para mim. E use todo o seu sangue e suor para concluir a tarefa.
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Shard of Lies
FantasyVincent Grinn nem de longe é o que você chamaria de bom. Um assassino profissional, a única coisa que move a sua vida é o constante desejo por poder. Quando Abigail, uma velha conhecida, o procura pedindo ajuda para localizar um artefato do lendário...