Capítulo XII

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- Eu não posso acreditar...

Quando os amigos foram ao encontro dos irmãos, estes guiaram-nos até uma sala de aula vazia sem grande conversa nem troca de palavras. A tensão e ansiedade cortava-lhes a respiração como se cordas lhes apertassem a garganta apenas o suficiente para os deixar naquele estado de inquietude e desassossego.

Selena sentou-se na cadeira do professor, com o braço magoado a descansar sobre a mesa, de perna cruzada, e a olhar para o irmão, que se encontrava em frente aos dois amigos. Após se certificar de que ninguém os iria interromper, John recebeu o aceno da permissão da irmã para dar início à tão esperada conversa.

"Como vocês já devem ter adivinhado, nós não somos exatamente gémeos... Mas conhecemos-nos desde sempre. Antes de vos contar a nossa história, acho que primeiro precisam de saber o básico.

"Para além da vossa raça humana e de todas as outras de animais que vocês conhecem, também existe a nossa, a sobrenatural. Os sobrenaturais são descendentes de humanos que evoluíram mais depressa do que o seu próprio tempo e que, com isso, adquiriram certas habilidades especiais. Claro que, tal como os humanos também têm os seus animais comuns, tal como o cão, o macaco ou o leão, nós também temos os nossos, chamados aniturais. Aquilo com que vocês se depararam ontem era um metamorfo canino, uma criatura, ou se preferirem, monstro, que tem semelhanças mais próximas às de um cão, e que por isso se pode transformar num cachorro pequeno e inocente para atrair as suas presas. Como devem adivinhar, há muitos outros tipos de metamorfos ou até mesmo de aniturais espalhados pelo planeta. Mas para já não têm que se preocupar com mais nenhum.

"Desde há milhares de anos atrás que sobrenaturais e humanos têm vivido juntos em harmonia. Todos nos ajudávamos uns aos outros: visto que nós descendemos dos humanos e eles nos deram estas habilidades, então porque não auxiliá-los com tarefas do dia-a-dia como acender fogueiras ou apanhar o gato de uma árvore? Por mais guerras e desacordos entre clãs ou reinos que houvesse, o raciocínio de todos era sempre o mesmo.

"No entanto, com a evolução da raça humana, foram-se também evoluindo certos sentimentos e pensamentos alternativos, em especial o racismo. Nos dias de hoje, sempre que a palavra racismo vos vem à cabeça, provavelmente também se lembram de uma pessoa de cor ou de diferente etnia da sociedade onde se encontra a ser excluída e gozada. Pois... fiquem a saber que tudo começou connosco. Certos humanos sentiam-se ameaçados com a nossa presença, e por essa razão chegavam mesmo a expulsar-nos das nossas casas e vilas, fazendo-nos sentir à parte e desconfortáveis com outros humanos. Passado pouco tempo, o feitiço virou-se contra o feiticeiro, e sobrenaturais começaram a tomar aldeias como sendo as deles, e enviando os humanos para onde a sorte os levasse.

"Dada a óbvia vantagem que os sobrenaturais levavam sobre os humanos, a raça humana extinguir-se-ia em poucos anos se os conflitos e as provocações continuassem, algo que os nossos Superiores da altura não poderiam admitir, visto que os humanos são sagrados para nós, são a nossa ascendência, a segurança da existência dos sobrenaturais. Assim, a resposta mais aceitável que eles conseguiram arranjar foi esconder os sobrenaturais dos humanos, mesmo que isso nos condenasse a uma vida nas sombras... Deu trabalho ter que apagar a mente a milhões de pessoas, e dar a entender aos aniturais o que se tinha passado e o dever de se refugiarem, mas conseguimos. A paz estava de novo restaurada. Ou pelo menos quase toda...

"Apenas um grupo de sobrenaturais não concordava com esta medida. Os sobrenaturais das trevas, demónios e tudo isso, liderados pelo seu rei Daemon, consideravam que os humanos eram uma raça frágil e ridícula e que eles sim eram superiores e mais poderosos, não entendendo o porquê de terem que se refugiar de algo que deveriam domar. Revoltado por ninguém lhe ter dado ouvidos, Daemon jurou guerra contra os humanos e reconquista do mundo para as trevas antes de ter sido preso pelos Superiores.

John calou-se, retomando o fôlego, aparentemente abalado com a história que estava a contar. Selena prosseguiu no lugar dele.

"Como devem adivinhar, Daemon conseguiu libertar-se à cerca de 50 anos atrás, e embora já não tivesse quase nenhum aliado na altura, ele está a recuperar forças cada vez mais rapidamente. Eu e John conhecemos-nos desde recém-nascidos, os nossos pais eram muito chegados. Até que uma noite, com 5 anos, ficámos os dois órfãos. Vimos os nossos pais a serem assassinados por 5 Tenebris mesmo à nossa frente. Tenebris é o nome que damos aos sobrenaturais que pertencem às trevas, e conseguem domá-las como se de um simples elemento se tratasse, como a água ou o fogo (respondeu Selena após ver a cara contorcida de Hugo com o novo nome).

"Vivemos uns dias na rua até que um feiticeiro nos encontrou e acolheu. E sim, é ele o nosso suposto pai aqui na escola. Após ter reconhecido e encontrado os limites dos nossos poderes na altura, Lúcifer começou-nos a treinar para que um dia consigamos vingar não apenas a morte dos nossos pais como de muitos outros humanos, para além das vidas que iríamos conseguir salvar. Desde os nossos 15 anos que o treino acabou e que temos andado em missões à volta do mundo a lutar contra os enviados de Daemon. Esta é a nossa terceira e aquela que mais desafios aparenta ter.

-E que missão tão importante é essa que possam ter cá em Portugal? - começou Hugo.

-Nós preferimos levar-vos primeiro ao Lúcifer para termos a certeza do que é a Liz é e que vocês são os dois de confiança. - John já tinha recuperado o fôlego e a compostura, deixando a amiga descansar um pouco.

-O que é que eu sou? O que é que tu queres dizer com isso?

-Nós temos razões para acreditar que tu és uma sobrenatural. Provavelmente apenas começaste agora recentemente a dar indícios de tal coisa, talvez ainda nem te tenhas apercebido, mas o Lúcifer gostava de te dar uma palavra para podermos chegar a uma conclusão. E se vieres connosco eu prometo que, em caso de ter sido falso alarme, apagamos as memórias aos dois para não terem que estar a pensar nestas coisas.

-Então e eu? Se ela vai eu vou com ela. - respondeu Hugo de imediato quando viu o ar preocupado na cara de Liz, prestes a empalidecer de novo.

- Tudo bem, mas o mais provável é termos que te apagar a memória, visto que deves ser humano não podemos arriscar que andes por aí com toda a informação que acabas-te de obter.

-Desculpa? Se não apagarem à Liz então nada feito. - replicou Hugo, colocando-se em frente da amiga - E para além do mais, o que é que vocês são?

John olhou para Selena, na dúvida do que iria responder, mas ela fez o trabalho por ele.

-Antes de eu te responder a essa pergunta quero já fazer-vos um aviso. Embora o poder do John já vos possa parecer um bocado assustador, então o meu acreditem que vos vai arrepiar. Já conseguiram sobreviver àquela história toda sem se acobardarem, por isso não o façam agora, porque eu juro que se desatarem a correr aos gritos eu não vou gostar. Em troca nós os dois prometemos que não vos iremos fazer mal algum, pelo menos até o Lúcifer dar o seu testamento final. - Liz e Hugo acenaram, ambos calados e de boca fechada, receando o que poderia estar em frente deles.

- O John é um Ignis, basicamente consegue controlar o elemento do fogo. - Selena fez uma curta pausa, à espera de alguma reação dos seus espectadores, mas foi em vão. - Já eu... Sou uma banshee. Banshees são conhecidas como sendo fadas negras precursoras da morte, ou aquelas que a anunciam. Neste momento estamos divididas entre as aliadas das trevas, e aquelas que acreditam que isto é mais uma maldição do que poder, e está a fazer o máximo para ajudar os humanos, por isso não se preocupem que posso ser negra, mas não estou com o Daemon. Quando temos uma premonição e conseguimos ver uma morte que está prestes a acontecer, a nossa tendência é gritar, ou chorar. Banshees treinadas como eu conseguem controlar o seu choro para o usar mais tarde durante uma luta, como a Liz pode ter reparado ontem.

A sala ficou em silêncio. Apenas os pássaros na rua e uns rumores de outras salas podiam ser ouvidos. Até que de repente, Liz deixa-se cair para cima de uma mesa com um estrondo, ficando sentada e com lágrimas nos olhos.

Eu não posso acreditar...

Aquelas quatro palavras ficaram a ecoar na cabeça de Hugo, que pensava uma coisa, mas apenas tarde demais descobriria a outra.

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