Capítulo Cinco

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    Normalmente, seria de ser esperar que uma garota que vai ter o primeiro encontro de sua vida tivesse prioridade absoluta diante do espelho. Mas quando chegou a noite da sexta-feira em que iriamos para Riverton, Patrícia estava tão ocupada olhando-se que era como se eu estivesse me vestindo no escuro. Ela ficava examinando o rosto no espelho de corpo inteiro, apertando os olhos e dando voltas, incapaz de encontrar o que quer que estivesse procurando, fossem imperfeiçoes ou beleza.
    -Você está ótima - disse eu. - Quer fazer o favor de comer algo? Você está quase invisível.
    - Nao falta nem um mês para o Baile de Outubro. Quero estar bem.
    - Que graça tem irão baile se você não puder se divertir?
    - Vou me divertir ainda mais deste jeito - Patrícia sorriu para mim. Ela tinha um jeito de ser ao mesmo tempo superior e inteiramente sincera. - Algum dia você vai entender.
    Não gostava quando ela falava comigo dessa forma condescendente, mas ela estava sendo legal comigo. Para meu encontro, tinha me emprestado um suéter macio cor de marfim, agindo como se esse fosse o maior favor que alguém já tivesse prestado. Talvez ele estivesse certa. Com aquele suéter, minha silhueta... bom, ficava claro que eu tinha uma, algo que as saias e os casacos desconjuntados na Noite Eterna jamais conseguiam revelar.
    -Nenhum de vocês vai? - perguntei, enquanto tentava prender o cabelo num rabo de cavalo alto. Nao precisei explicar a quem me referia com "vocês".
    - Erich vai dar outra festa na beira do lago - Patrícia deu de ombros. ela ainda vestia o robe de cetim cor-de-rosa, e seu cabelo estava coberto com um lenço rendado. Se ala ainda não tinha nem começado a se aprontar, a festa não ia rolar antes da meia-noite. - A maioria dos professores vai esta na cidade com vocês. Vai ser uma noite perfeita aqui.
    - Acho impossível que a escola Noite Eterna tenha noites perfeitas. 
    - Eles não estão nos prendendo em jaulas, Bianca. De qualquer forma, esse seu penteado não está dando certo.
    - Eu sei - suspirei. - Posso perceber isso sozinha.
    - Fique quieta - Patrícia veio por trás de mim, desmanchou as tranças irregulares que eu vinha tentando fazer a duras pernas, e soltou meu cabelo passando os dedos por entre ele. Então ela o juntou, prendendo-o com um nó frouxo na nuca. Alguns cachinhos ficaram soltos, emoldurando munha face. Era casual mas bonito, do jeitinho que sempre quis que ficasse. Vendo a transformação no espelhos, era quase como se meu cabelo tivesse sido arrumado por mágica.
    - Como você fez isso?
    - Com o tempo você aprende - ela sorriu, mas orgulhosa de sua técnica do que de mim. - Seu cabelo tem uma cor maravilhosa. Contrastando com o marfim do suéter, ele ressalta ainda mais. Viu?
    Desde quando esse tom de vermelho era uma "cor maravilhosa"? sorri para meu reflexo, pensando que, uma vez que Lucas e eu sairíamos juntos, qualquer milagre seria possível.
    - Linda - disse Patrícia, e desta vez, de alguma forma, percebi que ela estava sendo sincera. O elogio fora impessoal, talvez a ideia de beleza fosse mais importante para ela do que para mim. E ela não diria que eu estava linda se não achasse.
    Envergonhada e feliz, fique olhando um pouco mais para meu reflexo. Se Patrícia podia ver algo bonito em mim, quem sabe então Lucas também veria.

- Você está demais! - exclamou Lucas.
    Acenei-lhe com a cabeça, tentando não perdê-lo de vista enquanto, no meio dos outros alunos, entravamos no ônibus que nos levaria à cidade. A escola Noite Eterna não tinha nada tão comum como um ônibus escolar normal. Este era um micro-ônibus luxuoso, do tipo que um motel caro usaria, e devia ter sido alugado para aquela ocasião. Fui empurrada para dentro pela primeira leva de alunos, enquanto Lucas ainda estava lutando para chegar à porta. Pelo menos eu podia ver seu sorriso pela janela.
    - Superluxo! - riu Vic, desabando no assento a meu lado. Ele usava um chapéu de abas que parecia algo saído dos anos 1940, e na verdade estava muito gato, mas não era com ele que eu queria ficar durante a viagem. A decepção deve ter aparecido em meu rosto, por que ele cutucou meu ombro.
    - Não se preocupe, só estou guardando lugar pro Lucas.
    - Obrigada.
    Se não fosse por Vic, não teríamos conseguido viajar juntos. estava todo mundo impaciente para entrar no ônibus, e parecia que por volta de duas duzias de alunos, na verdade, praticamente todos que não eram do tipo Note Eterna, haviam decidido ir para Riverton. Tendo em vista que Riverton era um lugar chatíssimo, o que eles queriam, na verdade, devia ser afastar-se da escola,e qualquer lugar servia. Eu os compreendia.
    Vic foi galante e cedeu o lugar quando Lucas por fim chegou até onde estávamos, mas eu não diria que foi ali que nosso encontro começou. Estávamos rodeados pelos outros alunos, todos rindo, falando e gritando, aliviados por estarem fora da escola. Raquel estava a algumas filas de distancia, conversando animada com sua colega de quarto; ei tinha conseguido acalmá-la, ao menos por ora. Algumas pessoas lançavam em minha direção olhares curiosos que não eram exatamente amigáveis. Pelo visto, eu ainda era suspeita de ser parte da turma Noite Eterna, e isso chegava a ser engraçado, de tão equivocado. Vic ajoelhou-se no assento à nossa frente, determinado a contar-nos sobre o amplificador que ele ia comprar se a loja de som ficasse aberta até mais tarde.  
    - E o que você vai fazer com amplificador? - gritei acima do barulho, enquanto o ônibus sacolejava na estrada para a cidade. - Nao vão te deixar tocar guitarra no alojamento.
    Vic encolheu os ombros, com um enorme sorriso estampado na face.
    - Eu fico feliz só de olhar pra ele, cara! Saber que eu tenho algo tão da hora. Vai me fazer sorrir todos os dias.
    - Você nunca para de sorrir. Você sorri até quando dorme - apesar de Lucas dizer isso de gozação, eu percebia que, no fundo, ele gostava de Vic.
    - É o único jeito bom de viver, sabe?
    Vic era o oposto exato do tipo Noite Eterna, e decidi que também gostava dele.
    - O que vou fazer enquanto estivermos no cinema?
    - Explorar. Caminhar por ai. Sentir a terra debaixo dos pés - Vic agitou as sobrancelhas. - Quem sabe encontrar umas gatas.
    - Então deixe pra comprar o amplificador depois - observou Lucas. - Carregar aquela coisa com você vai limitar a sua ação.
    Vic concordou com um aceno de cabeça, muito serio, e tive de esconder meu sorriso com a mão.
    Assim, Lucas e eu não estávamos realmente a sós até que começamos a percorrer a rua principal de Riverton, a apenas uma quadra do cinema. Nós dois ficamos felizes com o filme que estava anunciando.
     - Suspeita - disse ele. - Dirigindo por Alfred Hitchcock. Ele é um gênio. 
     - Estrelando Cary Grant - Lucas me olhou, e acrescentei: - Você tem suas prioridades, eu tenho as minhas. 
     Havia vários outros alunos no saguão. Aquilo não indicava um retorno súbito da popularidade de Cary Grant, mas era consequência da falta de opção de entretenimento em Riverton. Nós dois, porem, estávamos ansiosos para ver o filme, até descobrimos quais professores estariam de olho nos alunos.
     - Acredite - disse minha mãe -, estamos tão chateados quanto você. 
     - Achávamos que vocês iriam comer algo - meu pai tinha o braço ao redor dos ombros dela, e parecia que eram eles que tinham um encontro, não nós. Estávamos em frente dos cartazes no saguão, Joan  Fontaine olhando-nos alarmada, como se enfrentasse meu dilema pessoal, e não o dela. - Foi por isso que decidimos vir para cá. Há outros professores tomando conta da lanchonete.
    - Ainda não é tarde demais para panquecas. Nao ficaremos ofendidos - acrescentou minha mãe, encorajando-me. 
     - Tá tudo bem - não estava tudo bem passar meu primeiro em contro junto com meus pais, mas que mais eu podia dizer? - Acontece que Lucas também gosta de filmes antigos, então... Pra nós tudo bem, certo?
    - Certo - Lucas não tinha cara de tudo bem pra nós. De algum modo, ele parecia ainda mais contrariado que eu. 
    - A menos que você goste de panquecas - disse eu.
    - Não. Quer dizer, eu gosto de panquecas, mas gosto mais de filmes antigos - ele ergueu o queixo, quase como se desafiasse meus pais a intimidá-lo. - Vamos ficar.
    Meus pais, em vez de ficarem intimidantes, sorriram.
    No jantar do domingo anterior, eu tinha contado a eles que Lucas e eu iriamos juntos a Riverton. Não abri o jogo mais do que isso, com medo de paralisá-los de choque, mas eles captaram a ideia. Para minha surpresa e aliviou, não me interrogaram; primeiro se entreolharam, avaliando suas próprias reações. Devia ser esquisito ver sua "criança milagrosa" crescida o bastante para sair com alguém. Meu pai disse, muito calmo, que Lucas parecia ser um bom rapaz, e então perguntou se eu queria mais macarrão com queijo.
    Resumindo, qualquer reação maluca superprotetora que Lucas estivesse esperando não se concretizou. Minha mãe disse apenas:
    - Se quiserem tentar nos evitar, e imagino que queiram, estaremos no balcão, porque é para lá que a maior parte dos alunos vai.
    Meu pai concordou.
    - Os balcões são fortes tentações, e exercem uma forte atração gravitacional sobre copos de refrigerante nas mãos de adolescentes. Já vi isso acontecer.
    - Acho que me lembro disso das aulas de Ciências - disse Lucas, muito serio.
    Meus pais riram. Fui invadida por uma onda de alivio. Eles tinham gostado de Lucas, e talvez logo o convidassem para o jantar de domingo. Eu já conseguia imaginar Lucas ao meu lado o tempo todo, e todos os lugares de minha vida onde ele se encaixaria.    
    Lucas não parecia tao seguro. Seus olhos estavam desconfiados enquanto me levava para dentro do cinema, mas imaginei que essa era mais ou menos a reação padrão de um rapaz aos pais de uma garota.
    Escolhemos assentos debaixo do balcão, onde meus pais não podiam nos ver. Lucas e eu nos sentamos bem perto um do outro, meu ombro e meu joelho roçando os dele.
    - Nunca fiz isso - ele disse. 
    - Ir a um cinema antigo? - olhei ao redor, curtindo as grandes ornamentais que decoravam as paredes e o balcão, e a cortina de veludo vermelho-escuro. - Eles são lindos.
    - Nao estou falando disso - apesar da agressividade, às vezes Lucas parecia quase tímido; isso só acontecia quando falava comigo. - Eu nunca... nunca sai com uma garota antes.
    - Também é o primeiro encontro para você?
    - Encontro... Ainda se usa essa palavra? - eu teria ficando constrangida se ele não tivesse cutucado meu ombro com o seu, de brincadeira. - Quer dizer, nunca estive com alguém desse jeito, sem nenhuma pressão ou sabendo que teria que me mudar em uma ou duas semanas.
    - Do jeito que você fala, parece que nuca se sentiu em casa em lugar algum.
    - Nao até agora.
    - Você se sente em casa na Noite Eterna? - olhei-o sem acreditar. - Fala serio.
    Um sorriso formou-se aos poucos no rosto dele.
    - Eu não estava falando da Noite Eterna.
    Naquele momento, as luzes se apagaram, e ainda bem. Se não, eu teria dito algo idiota em vez de curtir o momento.
    Suspeita era um dos filmes de Cary Grant que eu ainda não tinha visto. A personagem principal, Joan Fontaine, casa-se com Cary apesar de ele ser inconsequente e gastador. Mas ele é Cary maravilhoso Grant, e vale a pena perder uma graninha por ele. Lucas não ficou convencido com meu raciocínio.
    - Você não acha esquisito ele estudar venenos? - sussurrou. - Quem é que pesquisa venenos como passatempo? Você pelo menos vaio concordar que é algo esquisito.
    - Nenhum cara com essa aparência pode ser um assassino.
    - Alguém já sugeriu alguma vez que você talvez confie nas pessoas rápido demais?
    - Silencio - dei-lhe uma cotovelada no lado, e algumas pipocas caíram fora de nosso saco.
    Eu curti o filme, mas curti ainda mais estar perto de Lucas. Era incrível como conseguíamos nos comunicar sem dizer nada. Uma olhadela divertida de lado, ou a forma fácil como nossas mãos roçavam uma na outra e ele entrelaçava os dedos nos meus. A ponta de seu polegar descrevia pequenos círculos na palma da minha mão, e só isso já fazia meu coração disparar. Como seria ser abraçada por ele?
    No fim, eu estava certa. Descobriu-se que Cary pesquisava venenos para suicidar-se e salvar a podre Joan Fontaine de suas partem juntos de carro. Lucas sacudiu a cabeça quando o filme terminou.
    - Esse fim é falso, sabe? Para Hitchcock, ele era culpado. O estúdio fez Cary Grant redimir-se para o publico gostar do final.
    - O fim não pode ser falso se é o fim - respondi. As luzes se acenderam para o intervalo curto até a projeção principal. - Vamos para algum outro lugar? Temos um tempinho antes de o ônibus sair.
    Lucas olhou para cima, e percebi que ele não se incomodava nada em fugir da vigilância de meus pais.
    -Vamos.
    Seguimos a pequena rua principal de Riverton, onde parecia que cada loja ou restaurante aberto tinha sido invadido por refugiados da escola Noite Eterna. Lucas e eu passamos diante deles procurando o que realmente queríamos - um lugar onde ficarmos a sós. A ideia de que Lucas procurava alguma privacidade para nós me deixava ao mesmo tempo eufórica e um pouco intimidada. A noite estava fresca, e as folhas de outono farfalhavam enquanto caminhávamos pela calçada, olhando de soslaio um para o outro e falando de coisas banais
    Por fim, depois de passar pelo terminal de ônibus que marcava o final da rua principal, dobramos a esquina e encontramos uma velha pizzaria, que parecia não ter sido redecorada mais ou menos desde 1961. Em vez de pedir uma pizza inteira, pegamos apenas alguns pedaços de pizza de queijo, e refrigerantes, e nos instalamos em uma mesa. Estávamos de frente um para o outro, separando pela toalha xadrez vermelha e branca e uma garrafa de vinho coberta por uma musica de Elton John mais velha do que nós.
    - Gosto de lugar assim - disse Lucas. - Eles parecem de verdade, não como esses lugares em que as grandes redes planejam cada centímetro quadrado.
    - Eu também - eu teria dito a Lucas que gostava de comer berinjela na Lua, se ele também gostasse. Naquela instante, porem, eu dizia a verdade. - Aqui podemos relaxar e ser nós mesmos.
    - Ser eu mesmo - o sorriso de Lucas era distante, como se aquela fosse uma piada particular. - Devia ser mais fácil do que de fato é.  
    Eu sabia o que ele queria dizer.
    Estávamos quase sozinhos ali. A unica outra mesa ocupada tinha quatro sujeitos, operários que pareciam ter acabado de sair de alguma construção, com camisetas sujas de pó de gesso e uns tantos canecos vazios atestando a quantidade de cerveja que ja tinham tomado. Riam alto de suas próprias piadas, mas não me incomodavam. Eram uma boa desculpa para debruçar-me na mesa e ficar um pouco mais perto de Lucas.
    - Então, Cary Grant - começou Lucas, salpicando sua fata com pimenta seca. - Quer dizer que é o cara dos seus sonhos, hein?
    - Ele é uma especie de rei dos caras dos ombros, não é? Eu tenho uma paixonite por ele desde que vi Boêmio encantador, quando tinha cinco ou seis anos.
    Seria de se esperar que Lucas, o fã de cinema, concordasse comigo, mas não. 
    - A maioria das adolescentes tem paixonites por astros atuais, que estão fazendo filmes agora. Ou por artistas de teve.
    Dei uma mordida na pizza e, por um segundo, tive de lidar com a situação delicada de partir o queijo esticado.
    - Gosto de um monte de atores, mas quem não prefere Cary Grant acima de todos? - falei eu de boca cheia, quando consegui.
    - Mesmo que eu concorde que é um fato trágico, vamos encarar a realidade: um monte de gente da nossa idade jamais ouviu falar de Cary Grant.
    - Isso é um crime - tentei imaginar a cara da sra. Bethany se eu sugerisse uma matéria opcional de Historia do Cinema. - Meus pais sempre me apresentaram aos filmes que eles curtiram antes que eu nascesse.
    - Cary Grant fez sucesso na década de 1940, Bianca. Ele trabalhava em filmes setenta anos atrás.
    - E seus filmes têm passado na televisão desde então. É fácil para alguém conhecer os filmes antigos, se quiser.
    Lucas hesitou, e senti uma pontada de receio, uma urgência imediata de mudar de assunto e falar de outra coisa, qualquer coisa. Mas atrasei-me um instante, porque ele prosseguiu.
    - Você disse que seus pais a trouxeram para a Noite Eterna para que você pudesse conhecer mais gente, ter uma visão mais ampla do mundo. Mas dá a impressão de que eles se esforçam bastante pra garantir que seu mundo continue o menor possível.
    - Como é que é?
    - Esqueça - ele deu um suspiro profundo e deixou cair a borda da pizza no prato. - Eu não devia ter tocado no assunto. A gente devia estar se divertindo.
    Talvez eu devesse deixar passar. A ultima coisa que eu queria na noite de meu primeiro encontro com Lucas era discutir. Mas não pude.
    - Nao, eu quero entender. O que você acha que sabe sobre meus pais?
    - O que sei é que eles a exilaram na Noite Eterna, que deve ser o ultimo lugar na face da Terra onde o século vinte e um ainda não chegou. Sem celular, sem internet wi-fi, conexão a cabo só num laboratório de informatica que tem, tipo, quatro computadores, sem televisão; quase sem contato com o mundo exterior.
    - É um internato. A ideia é que esteja separado do mundo!
    - Eles querem que você fique separada do resto do mundo. É por isso que te ensinaram a amar as coisas que eles amam e não o que garotas de sua idade costumam curtir.
    - Eu mesma decido o que gosto ou não - podia sentir minhas faces enrubescendo de fúria. Em geral, quando ficava assim tão irritada, terminava chorando, mas estava decidida a não faze-lo. - Alem do mais, você é fã de Hitchcock, e também gosta de filmes antigos. Isso significa que seus pais controlam a sua vida?
    Ele se debruçou para frente, e seus olhos verde-escuros eram intensos, prendendo-me. Eu havia desejado que me olhasse assim a noite inteira, mas não da forma como estava acontecendo. - Você tentou fugir de sua família uma vez, e aí desistiu dizendo que era só uma encenação idiota 
    - E é o que foi. 
    - Acho que você estava pressentindo algo. Você estava certa em sentir que há algo errado na Noite Eterna. E acho que devia escutar essa voz dentro de você e parar de dar tanta atenção ao que seus pais dizem.
    Lucas não podia estar dizendo essas coisas. Se meus pais o ouvissem falando assim... Não, eu não queria nem pensar nisso.
    - Só porque a Noite Eterna é uma droga não quer dizer que eles sejam maus pais, e você tem que ser muito atrevido para criticá-los quando mal os conhece. Você não sabe de nada sobre minha família e não consigo entender por que se preocupa tanto com ela.
    - Porque... - ele parou, como que surpreso com suas próprias palavras. Devagar, quase sem acreditar, ele disse - ... porque eu gosto de você.
    Ah, por que ele tinha que dizer isso agora? Desse jeito? Sacudi a cabeça.
    - Você não diz coisa com coisa.
    - Ei - um dos operários acabava de colocar acabavam de colocar alguma musica ruim dos anos oitenta na jukebox. Agora vinha em nossa direção, meio desequilibrado. - Você esta importunando a mocinha?
    - Esta tudo bem - apressei-me em dizer. Não era o momento de descobrir que o cavalheirismo não estava morto. - Serio, não tem problema nenhum.
    Lucas agiu como se nem tivesse me ouvido.
    - Isso não é da sua conta - disse, rude, enquanto encarava o sujeito.
    Foi como jogar um fosforo numa poça de gasolina. O homem chegou mais perto, ameaçador, e seus amigos se ergueram.
    - Se você trata sua namorada assim em publico, é sim da minha conta.
    - Ele não estava me tratando mal! - eu ainda estava brava com Lucas, mas a situação estava claramente saindo de controle. - É ótimo  que vocês se preocupem em, hã, proteger as mulheres, serio, mas não aconteceu nada. 
    - Fique fora disso - disse Lucas, com voz grave. Havia nela uma nota que eu nunca ouvira antes, uma intensidade que parecia não ser natural. Um calafrio percorreu munha espinha. - Ela não é responsabilidade sua.
    - Você acha que é dono dela, ou algo assim? E que pode tratá-la como quiser? Você me lembra o porco que se casou com minha irma - o homem parecia mais furioso que nunca. - Se acha que não vou lhe dar o que dei a ele, está muito enganado, garoto.
    Em desespero, olhei em volta, procurando um garçom ou o dono de lugar. Meus pais. Raquel. Eu queria alguém, qualquer um que pudesse colocar um ponto final naquilo antes que aqueles bêbados moessem Lucas de pancada. Eles eram enormes, estavam em quatro e a essa altura pareciam mais do que ansiosos por uma briga.
    Nunca imaginei que Lucas atacasse primeiro.
    Ele se moveu tão depressa que mal vi. Houve um movimento confuso, e então o operário foi jogado para trás, sobre seus amigos. O braço de Lucas estava estendido, seu punho cerrado, e demorou um pouco até a ficha cair. Deus do céu, ele acaba de dar um soco em alguém.
    - Que diabos? - outro operário avançou para Lucas, que se desviou tão rápido que parecia ter desaparecido e reaparecido em outro angulo, empurrando com tanta força seu oponente, que achei que fosse cair.
   - Ei - um homem de seus quarenta anos, usando um avental sujo de molho veio da cozinha. Não me importava se era o proprietário, o cozinheiro ou o prefeito, nunca em minha vida fiquei tão feliz em ver alguém. - O que está acontecendo aqui?
    - Nao tem nenhum problema - tá, eu estava mentindo, mas não importava. Levantei-me e comecei a me dirigir à porta. - Estamos indo embora, acabou.
    Os operários e Lucas continuaram encarando-se, como se não quisessem outra coisa senão brigar para valer, mas por sorte Lucas me seguiu. Quando a porta se fechou por trás de nós, ouvi o proprietário reclamando algo sobre os alunos daquela maldita escola.
    Assim que estávamos na rua, Lucas ser virou para mim.
    - Você está bem.
    - Não graças a você! - comecei a andar depressa de volta para o ônibus. - Que bicho te mordeu? Você começou uma briga com aquele cara por nada!
    - Ele começou!
    - Não, ele começou a discussão. Você começou a briga.
    - Eu estava te protegendo.
    - Ele também achou que estava. Ele podia estar bêbado, e ter sido grosseiro, mas não queria fazer mal nenhum.
    - Você não sabe que lugar perigoso o mundo é, Bianca.
    Lucas já tinha falado comigo desse jeito, como se fosse muito mais velho que eu, e quisesse me ensinar e me proteger. Isso havia m aquecido por dentro e me deixando feliz. Agora só me deixava mais brava.
    - Você se comporta como se soubesse tudo, e entoa age como um idiota, começando uma briga com quatro caras! E eu vi como você briga. Você já fez isso antes. 
    Lucas caminhava ao meu lado, mas seus passos ficaram mais lentos, como se estivesse chocado. Percebi que o que de fato o chocara entra minha dedução. Eu estava certa. Lucas ja havia estado em brigas como aquelas antes, e mais de uma vez.
    - Bianca...
    - Nem tenta - ergui minha mão, e caminhamos em silencio até o ônibus, que já estava rodeado de estudantes, a maioria com sacolas de compras ou com refrigerantes.
    Lucas sentou-se no assento ao meu lado, como se ainda tivesse esperança de conversamos, mas cruzei os braços e olhei pela janela. Vic pulou no banco em frente do nosso.
    - E aí, gente, que que tá rolando? - perguntou, exuberante. Então ele viu nossas caras. - Ei, parece que é a hora perfeita para eu contar uma de minhas historias intermináveis e desconexas que não chegam a lugar nenhum.
    - Grande plano - disse Lucas, lacônico.
    Vic manteve a palavra e continuou falando sobre pranchas de surfe e da banda Panic! at the Disco e de sonhos estranhos estranhos que teve muito tempo atras, e não parou de matraquear até chegarmos à escola. Isso me poupou de ter de falar com Lucas; e, de sua parte, Lucas não disse absolutamente nada.

NOITE ETERNA                    DE CLAUDIA GRAYOnde histórias criam vida. Descubra agora