Capítulo Nove

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    Depois disso, parecia que eu vivia em dois mundos diferentes ao mesmo tempo. Em um deles, Lucas e eu estávamos finalmente juntos. Era como estar em algum lugar com o qual sonhei a vida toda. No outro, eu era uma mentirosa que não merecia estar com Lucas nem com mais ninguém.
    - Ainda parece estranho - murmurou Lucas baixinho, para não ser ouvido no resto da biblioteca.
    - O que parece estranho?
    Lucas olhou em volta antes de responder, certificado-se de que ninguém podia ouvir. Nao precisava ter-se preocupado. Estávamos num dos recintos mais distantes, cheio de volumes encadernados a mão dois século atrás, um dos locais mais reservado da escola.
    - Que nenhum de nós se lembre de fato daquela noite.
    - Você se feriu - quando em duvida, eu repetia a história inventada pela sra. Bethany. Lucas não acreditava por completo nela, mas com o tempo acreditaria. Ele tinha de fazê-lo. Tudo dependia disso. - Muitas vezes, as pessoas esquecem o que aconteceu pouco antes de se ferirem. Faz sentido, não faz? Aquela grade de ferro é afiada.
    - Já beijei garotas antes... - suas palavras sumiram quando ele percebeu a forma como eu o olhava. - Ninguém como você. Nem de perto.
    Baixei a cabeça para esconder meu sorriso envergonhado. Lucas prosseguiu.
    - De qualquer forma, isso não me faz desmaiar. Nunca fez. Você beija superbem, acredite em mim, mas nem você poderia me fazer apagar.
    - Não foi por isso que você desmaiou - sugeri, fingindo que na verdade queria voltar à leitura de um livro de jardinagem; a única razão pela qual o pegara era a curiosidade persistente sobre a flor de meu sonho, meses antes. - Você desmaiou porque aquela trave de ferro enorme caiu em sua cabeça.
    - Isso não explica por que você se lembra.
    - Você sabe que tenho problemas de ansiedade, certo? Às vezes entro em panico. Quando nos vimos da primeira vez, eu estava no meio de um tremendo ataque de panico. Tremendo! Tem partes de minha grande fuga de que também não lembro bem. Quando você foi atingido na cabeça, devo ter entrado em panico de novo. Quero dizer, você podia ter morrido - essa parte ao menos se aproximava da verdade. - Não é à toa que eu estava aterrorizada.
    - Não tenho nenhum galo na cabeça, só um machucado, como se tivesse caído ou algo assim.
    - Nós pusemos gelo. Tomamos conta de você.
    -  Ainda não faz sentido - disse Lucas, sem se convencer. 
    - Não sei por que você ainda pensa nisso - dizer isso fazia de mim, outra vez, uma mentirosa, e pior que antes. Insistir na história era necessário para proteção do próprio Lucas, pois, se a sra. Bethany percebesse que ele desconfiava de algo, poderia... poderia... ah, eu não sabia o que ela poderia fazer, mas suspeitava que não seria nada bom. Mas dizer a Lucas que ele estava errado em duvidar, que suas perguntas sensatas e validas sobre a escola e o lapso de memoria daquela noite eram só bobagens, isso era pior. Era pedir que Lucas duvidasse de si mesmo, e eu não queria fazer isso. Eu agora sabia c omo era horrível duvidar de si próprio. - Por favor, Lucas, esqueça.
    - Vamos falar sobre isso alguma outra hora.
    Quando ele deixava o assunto de lado e parava de se preocupar com a noite do Baile de Outono, os momentos que passávamos juntos eram maravilhosos. Quase perfeitos. Estudávamos na biblioteca ou na sala de aula da minha mãe, às vezes com Vic ou Raquel. Almoçávamos ao ar livre, sanduíches embrulhados em sacos pardos enfeados nos bolsos de nossos casacos. Eu devaneava com ele durante as aulas, saindo de meu alegre estupor apenas o suficiente para evitar reprovação nas matérias. Nos dias em que tínhamos Química juntos na sala de Iwerebon, chegávamos e partíamos lado a lado. Nos  outros dias, ele ia me encontrar assim que as aulas terminavam, como se pensasse ainda mais em mim do que eu pensava nele.
    - Ora, vamos - Lucas murmurou para mim numa tarde de domingo, quando o convidei a ir ao apartamento de meus pais. ( Eles nos receberam com muito tato e depois nos deixaram ficar em meu quarto pelo resto do dia.) Estávamos deitados no chão, sem nos tocarmos mas bem próximos, olhando a pintura de Klimt. - Não sei nada de arte. 
    - Você não tem que saber. Apenas olhe e diga o que sente.
    - Não sou bom em dizer o que sinto.
    - É, eu notei. Mas pelo menos tente, tá.
    - Tudo bem - ele pensou um tempão, o tempo todo olhando para O beijo. - Acho... acho que gosto da forma como segura o rosto dela em suas mãos. Como se ela fosse a única coisa no mundo que o fizesse feliz, que realmente lhe pertencesse.
    - Você realmente vê isso na pintura? Para mim ele parece... Forte, eu acho - o homem  de O beijo com certeza me parecia ter o controle da situação; a mulher em transe parecia gostar das coisas daquele jeito, ao menos naquele momento.
     Lucas voltou-se para mim, e deixei minha cabeça rolar para o lado, de forma que ficávamos cara acara. O jeito que ele me olhou, decidido, serio, cheio de desejo, me fez prender a respiração.
    - Acreditar em mim. Eu sei que entendi direito - foi só o que disse
    Nós nos beijamos, e meu pai escolheu o momento perfeito para nos chamar para o jantar. O sexto sentido dos pais é desconcertante. Eles se divertiram no jantar, e até mesmo comeram, fingindo gostar da comida.
    Ficar com Lucas significava ter menos tempo para meus amigos, coisa que na verdade eu não queria. Balthazar ainda era gentil como sempre, cumprimentando-me no corredor e saudando Lucas com um aceno de cabeça, como se fosse seu amigo e não alguém com quem quase brigado na noite do Baile de Outono. Mas seus olhos eram tristes, e eu sabia que o magoara não lhe dando uma chance.
    Raquel estava solitária também. Mesmo que às vezes a convidássemos para estudar conosco à noite, ela e eu nunca mais almoçamos juntas. Ela não tinha feito outra amizades, que soubesse. Lucas e eu meio que tivemos a ideia de junta-la com Vic, mas os dois não combinavam. Eles ficavam conosco e se divertiam, mas só isso. 
    Uma vez pedi-lhe desculpas por ficar menos tempo com ela, mas ela não deu importância.
    - Você está apaixonada. Isso faz você ficar tipo chata para pessoas que não estão apaixonadas. Quer dizer, as pessoas sãs.    
    - Eu não sou chata - protestei. - Pelo menos não mais do que era antes.
    Raquel respondeu juntando as mãos diante de si e levantando os olhos, levemente desfocados, para o teto da biblioteca.
    - Você sabia que Lucas gosta de sol? Ele gosta! Flores e coelhinhos também. Agora  vou te contar tudo a respeito dos cordoes fascinantes dos tênis fascinantes de Lucas.
    - Ah, fica quita - dei um tapa no ombro dela, e ela riu. Ainda assim, senti uma distancia estranha entre nós. - Eu não quero te deixar sozinha.
    - Esquece. tá tudo bem entre nós - Raquel abriu o livro de biologia, obviamente disposta a encerrar o assunto.
    - Você parece não ter nenhum problema quanto a ele - disse eu,com cautela. 
    Ela encolheu os ombros e não levantou os olhos do livro.
    - Claro que não. Eu deveria?
    - É só... Algumas de nossas conversas antes... Mas não tem nenhum problema. De verdade - Raquel tinha tido tanta certeza de que Lucas poderia me atacar, sem saber que era exatamente o contrario. - Quero que você o veja como ele é.
    - Um cara fabuloso, maravilhoso, que adora o sol e vomita flores - Raquel estava brincando e não estava. Quando por fim nossos olhos se encontraram, ela suspirou. - Ele parece ok.
    Eu sabia que não iria conseguir mais nada dela naquele dia, e mudei de assunto.
    Enquanto minha melhor amiga na Noite Eterna não estava nem um pouco empolgada com Lucas, um  monte de meus piores inimigos achavam que era uma grande ideia. Eles estavam feliz por eu tê-lo mordido.
    - Eu sabia que no final você ia se adaptar - disse-me Courtney na aula de Tecnologia Moderna, a disciplina em que nenhum aluno humano se inscrevera. - Você nasceu vampira. Isso é super-raro e poderia e tudo o mais. Não havia como você continuar uma tremenda perdedora pelo resto da vida.
    - Uau, obrigada, Courtney - disse eu, seca. - Podemos falar de outra coisa?
    - Não sei por que você ficou tão horrorizada - Erich me deu um sorriso adulador enquanto lidava com a tarefa do dia, um iPod. - Quer dizer, imagino que qualquer sujeito seboso como Lucas Ross deve deixar um gosto esquisito depois, mas, puxa vida, sangue fresco é sangue fresco.
    - Acho que todos deveríamos ter direito a um lanchinho de vez em quando - insistiu Gwen. - Afinal de contas, a escola agora tem até um bufê ambulante, e ninguém pode dar nem uma provadinha?
    Algumas pessoas murmuraram, concordando.
    - Todo mundo preste atenção - exigiu o sr. Yee, nosso professor.Como os demais professores na Noite Eterna,ele era um vampiro extremamente poderoso, que tinha permanecido como parte do mundo por um longo período e ainda assim ficado em forma. Não era especialmente velho; ele nos contou que tinha morrido na década de 1880. Mas a força e a autoridade irradiavam dele com quase tanta intensidade como da sra. Bethany. Era por isso que todos os alunos, mesmo aqueles que eram séculos mais velhos que ele, respeitavam-no. A sua ordem, todos fizemos silencio.- Vocês manusearam seus iPods por alguns minutos. Alguma pergunta?
    Patrícia ergueu a mão primeiro.
    - O senhor disse que a maioria dos eletrônicos hoje em dia pode conectar-se sem fio. Mas parece que este aqui não pode.
    - Muito bem, Patrícia - quando o sr. Yee a elogiou, Patrícia deu-me um sorriso agradecido. Eu lhe explicara o conceito de conexão sem fio algumas vezes. - Esta limitação é uma das poucas falhas conceituais do iPod. Os próximos modelos já deverão incorporar alguma forma de conexão sem fio. Bom, e existe, é claro, o iPhone, que veremos na semana que vem.
    - Se a informação dentro do iPod recria a música - disse Balthazar, compenetrado -, então a qualidade do som dependera completamente do tipo de alto-falantes ou fones de ouvido usados. Certo?
    - Em linhas gerais, sim. Existem formatos de gravação de melhor quantidade, mas os ouvintes comuns, e mesmo alguns profissionais, não seria capazes de detectar uma diferença, caso o iPod esteja conectado a um sistema de áudio de excelente qualidade. Mais alguém? - o sr. Yee olhou ao redor da sala e suspirou. - Sim , Ranulf?
    - Que espíritos animam esta caixa?
    - Nós já falamos sobre isto. - Ponda as mãos sobre a carteira de Ranulf, o sr. Yee disse devagar: - Nenhum espirito anima nenhuma das maquinas que já estudamos aqui. Ou que iremos estudar. Na verdade, nenhum espirito anima maquina alguma, qualquer que seja. Isso finalmente ficou claro?
    Ranulf fez que sim com a cabeça, mas não parecia convencido. Seu cabelo castanho estava cortado num estilo tigela, e ele tinha uma fisionomia aberta e inocente.
    - E os espíritos do metal do qual a caixa é feita? - arriscou ele, depois de um instante.
    O sr. Yee descaiu os ombros, como se tivesse sido derrotado.
    - Há alguém aqui do período medieval que possa ajudar Ranulf com essa transição? - Geneviève fez que sim com a cabeça e foi para junto dele.
     - Puxa, não é tão difícil,é como, tipo, um walkman turbinado, ou algo assim - Courtney deu Ranulf um olhar cético. Ela era um dos poucos na Noite Eterna que parecia nunca ter perdido contato com mundo moderno; pelo que me parecia, Courtney tinha vindo para cá muito mais para socializar. Pior para todos os demais. Suspirei e voltei minha atenção para a playlist que estava criando para Lucas, com minhas músicas preferidas. Tecnologia Moderna era de fato fácil demais para mim.
    O lugar onde era mais difícil esquecer o problema que escondia logo abaixo da superfície era a aula de Inglês. Já tínhamos terminado os estudos de folclore, e agora estávamos fazendo uma analise dos clássicos e nos aprofundando em Jane Austen, uma de minhas favoritas, Supus que não havia como algo dar errado com esse tema. A aula da sra. Bethany era um universo paralelo da literatura onde tudo ficava de cabeça para baixo, inclusive eu. Até livros que eu já havia lido antes e conhecia de trás para a frente tornavam-se estranhos em sua aula, como se tivesse sido trazidos para algum idioma desconhecido grosseiro e gutural. Mas Orgulho e preconceito... esse seria diferente. Ou assim eu pensava.
    - Clarlotte Lucas está desesperada. - Eu tinha até levantado a mão, oferecendo-me como voluntaria para responder. Por que é que achei aquela uma boa ideia? - À época, se as mulheres não se casassem elas eram, bom, ninguém. Eles não podiam ter dinheiro ou propriedades delas próprias. Assim, se não queriam ser um peso para seus pais por toda a vida, tinham que se casar - não dava para acreditar que eu tivesse de dizer isso a ela.
    - Interessante - disse a sra. Bethany. "Interessante" era seu sinônimo para "errado". Comecei a suar. Ela caminhava em circulo lento ao redor da sala, e o sol da tarde fazia brilhar o broche de ouro na garganta de sua blusa de renda. Eu podia ver os sulcos em suas unhas longas e espessas.
    - Diga-me, Jane Austen era casada?
    - Não. 
    - Ela foi pedida em casamento uma vez. Seus familiares deixaram esses ponto muito claro nas varias memorias que escreveram. Um homem de posses ofereceu sua mão em casamento a Jane Austen, mas ela o recusou. Ela tinha que ser casada, senhorita Olivier?
    - Bom, não, mas ela era escritora. Seus livros teriam garantido...
    - ... menos dinheiro do que imagina. - A sra. Bethany estava satisfeita por eu ter caído em sua armadilha. Apenas agora eu entendia que o modulo de folclore de nosso curso tivera como proposito ensinar aos vampiros o que a sociedade do século vinte e um pensava a respeito do sobrenatural, e que os clássicos eram uma forma de estudar como as atitudes mudaram entre épocas passadas e os dias de hoje. - A Família Austen não era especialmente rica. E quanto aos Lucas, eles eram pobres?
    - Não - respondeu Courtney. Ela não estava me ajudando, mas exibindo-se. Uma vez que já não estava empenhada em me humilhar, ela devia estar fazendo aquilo para chamar a tenção de Balthazar. Desde o baile, ela renovara seus esforços para conquista-lo, mas, até onde eu percebia, sem qualquer efeito. Courtney continuou. - O pai é sir William Lucas, único membro da nobreza no povoado. Eles são ricos o suficiente para que charlotte não precise se casar, se não quiser.
    - Você acha que ela realmente quer se casar com o senhor Collins? - repliquei. - Ele é um idiota pomposo.
    - Ela quer se casar, e ele é um meio de alcançar seus objetivos - Courtney deu de ombros.
    A sra. Bethany acenou com a cabeça, de forma aprovadora.
    - Assim, Charlotte esta apenas usando o senhor Collins. Ela acredita que o faz por necessidade. Ele acredita agir por amor, ou pelo menos com o devido sentimento por uma esposa em potencial. O senhor Collins é honesto. Charlotte não é.
    Pensei a mentira que havia contado a Lucas, segurando o caderno com tanta força que as bordas afiadas do papel pareciam cortar as pontas de meus dedos. A sra. Bethany devia saber o que eu sentia, pois prosseguiu.
    - O homem que é enganado não merece nossa piedade em vez de nosso desprezo?
    Desejei poder afundar no chão.
    Então Balthazar me deu um sorriso de encorajamento, como costumava fazer, e eu soube que , mesmo que não mais ficássemos juntos, pelo menos ainda eramos amigos. Na verdade, ninguém do pessoal Noite Eterna me esnobava como antes. Mesmo que eu ainda não fosse vampira de verdade, eu provara algo. Talvez já fizesse parte "do clube".
    Em certos aspectos, era como se tivesse conseguido fazer algo, um truque de algum tipo, fechando os olhos e dizendo abracadabra, que houvesse virado o mundo ao contrario. Quando estava de mãos dadas com Lucas, rindo de alguma de suas brincadeiras, depois das aulas, eu conseguia crer que tudo seria melhor daí em diante.
    Mas não era verdade. Nao poderia ser enquanto eu estivesse enganando Lucas.
    Antes, nunca encarara como mentira o fato de esconder de Lucas o segredo de minha família; eu havia aprendido a manter esse segredo desde que era bem novinha, tomando em minha mamadeira o sangue vindo do açougue. Agora que eu sabia como estava perto de magoá-lo, meu segredo já não parecia inocente.
    Lucas e eu nos beijamos o tempo todo; antes do cafe da manha quando íamos pata nossos quartos de noite, e a qualquer momento em que conseguíssemos ficar sozinhos por um instante. No entanto, eu sempre parava antes de perdermos o controle. Às vezes eu queria mais, e podia perceber que Lucas também queria, pelo jeito como me olhava, prestando atenção em meus movimentos ou no modo como meus dedos envolviam seu pulso. Ele nunca me forçou, porém. Quando eu estava deitada sozinha, de noite, minhas fantasias se tornavam ainda mais loucas e desesperadas. Agora eu conhecia a sensação da boca de Lucas na minha, e podia imaginar seu toque em minha pele nua com uma clareza surpreendente.
    Mas agora, quando tinha essas fantasias, a mesma imagem sempre terminava por se formar: meus dentes cravando-se na garganta de Lucas.
    Havia horas em que eu achava que faria qualquer coisa para provar o sangue dele de novo. Era quando eu ficava mais assustada.
    - Que tal? - ajeitei o chapéu antigo de veludo para mostrar a Lucas, achando que ele ai rir; com certeza, o roxo forte do tecido ia fazer um contraste esquisito com meu cabelo vermelho.
    Em vez disso ele sorriu para mim, de uma forma que me aqueceu.
    - Você esta linda.
    Estávamos em uma loja de roupas de segunda mão em Riverton, curtindo muito mais nosso segundo final de semana juntos na cidade do que o primeiro. Meus pais estavam de novo acompanhando os alunos no cinema, e decidimos deixar passar a oportunidade de assistir a O Falcão Maltês. Em vez disso, percorremos as lojas ainda abertas, olhando cartazes e livros, e tendo que aguentar os olhares de contrariedade de alguns vencedores, que deviam estar cansados de adolescentes "daquela escola" soltos por toda parte. Problema deles, pois nós nos divertíamos.
    Peguei uma estola branca de pele e envolvi meus ombros com ela.
    - O que você acha?
    - Pele é uma coisa morta - disse Lucas, de um modo azedo, mas talvez ele achasse que ninguém nunca deveria usar roupas de pele. Por mim, tudo bem quando fossem roupas antigas; os animais haviam morrido décadas atras, e você não estava fazendo nada que causasse ainda mais dano. Ainda assim, tirei rápido a estola.
    Lucas, enquanto isso, provava um sobretudo de tweed cinza que encontrara em uma arara superlotada no fundo da loja. Como o resto das coisas ali, tinha um cheiro de guardado que não  chegava a ser desagradável, e ficava muito bem nele.
    - Dá um ar de Sherlock Holmes... - disse eu - ... se Sherlock Holmes fosse sexy.
    - Algumas garotas gostam do tipo intelectual, sabe? - riu ele. - Não é sorte sua que eu não seja desse tipo?
    Lucas gostava quando eu o provocava. Ele me agarrou, envolvendo meus braços com os seus, de forma que eu não podia abraça-lo também, e me deu um beijo estalado na testa.
    - Você é impossível - ele murmurou. - Mas vale a pena.
    Da forma como ele me segurava, meu rosto estava enterrado na curva de seu pescoço; tudo o que eu podia ver eram as tênues linhas rosadas em sua garganta, as cicatrizes de minha mordida.
    - Que bom que você acha isso.
    - Eu sei disso.
    Eu não ia discutir com ele. Não havia motivo para que meu único e terrível erro não permanecesse assim - único, jamais repetido.
    O dedo de Lucas roçou minha face, um toque suave como a ponta macia de um pincel. O beijo de Klimt me veio à mente, dourado e diáfano, e por um momento foi como se Lucas e eu realmente tivéssemos penetrado no quadro, com toda sua beleza e seu sentimento. Óculos como estávamos atrás das araras de roupas, perdidos em um labirinto de peças velhas de couro e cetim amarrotado e fivelas embaçadas pela idade, Lucas e eu podíamos ficar nos beijando por horas sem sermos descobertos. Imaginei por um momento a cena, Lucas colocando um casaco negro de pele no chão, estendendo-me nele, deitando-se devagar por cimas de mim...
    Pressionei meus lábios contra seu pescoço, em cima das cicatrizes, do mesmo jeito que minha mãe costumava beijar um machucado ou arranhão para que sarasse mais depressa. Sua pulsação era forte. Lucas retesou-se, e pensei ter ido longe demais.
    Também não deve ser fácil para ele, disse a mim mesma. Às vezes penso que vou enlouquecer se não o tocar, e para Lucas deve ser muito pior...Especialmente por ele não saber os motivos pelos quais não podemos.
    Um tilintar de sinos tirou-nos do transe. Olhamos para ver quem havia entrado.
    - Vic! - Lucas sacudiu a cabeça. - Eu devia saber que você ia aparecer por aqui.
    Vic veio sem pressa até nós, os polegares sob as lapelas do blazer listrando que usava sob o casaco de inverno.
    - Este visu não se monta sozinho, cara. Dá trabalho ficar bonito assim - ele gemeu ao olhar com cobiça o sobretudo de Lucas. - Pô, os caras altos como você sempre ficam com os bagulhos mais na hora.
    - Não vou levar isso - Lucas tirou o casaco, pronto para partir. Talvez ele quisesse mais alguns momentos de privacidade comigo; era quase hora de voltar ao ônibus. Eu sabia como ele se sentia. Por mais que gostasse de Vic, não queria que nos seguisse por aí.
    - Você tá maluco, Lucas. Acha que uma coisa dessa ia me servir? Eu ia rasgar isso em dois - Vic suspirou. Ele parecia perigosamente propenso a acompanhar-nos até o ônibus.
    Pensei depressa.
    - Sabe, acho que vi umas gravatas com dançarinas havaianas no fundo da loja.
    - Serio? - num passe de magica, Vic se foi, abrindo caminho entre araras de roupas em busca das gravatas com dançarinas.
    - Bom trabalho - Lucas tirou o chapéu de minha cabeça e pegou minha mão. - Vamos. 
    Estávamos quase na porta quando passamos pelo mostruário de joias, e um objeto escuro e reluzente chamou minha atenção. Um broche, entalhado em alguma substância que era negra como o céu noturno, mas de brilho intenso. Percebi que eram duas flores, exóticas e de pétalas estreitas, como a de meu sonho. O broche cabia na palma da minha mão e era bem trabalhado, mas o que me surpreendeu era sua incrível semelhança com uma flor que achava só existir em minha imaginação. Detive-me e cravei os olhos nele.
    - Veja, Lucas. É maravilhoso.
    - É o genuíno azeviche de Whitby. Um joia usada durante o luto na era vitoriana - a vendedora olhava-nos por cima de seus óculos de leitura de armação azul, tentando avaliar se eramos clientes em potencial ou adolescentes que precisavam ser enxotados. Ele deve ter decidido pelo segundo, pois acrescentou: - Muito caro.
    Lucas não gostava de ser desafiado.
    - Quanto? - perguntou, com frieza, como se seu sobrenome fosse Rockefeller em vez de Ross.
    - Duzentos dólares.
    Meus olhos provavelmente saltaram para fora. Quando seus pais são professores, você não tem a maior mesada do mundo. A única coisa que eu já tinha comprado que custara mais de duzentos dólares fora meu telescópio, e meus pais haviam me ajudado. Dei uma risadinha, tentando disfarçar o constrangimento e a tristeza que sentia por ter deixar para trás o broche. Cada pétala negra era mais bonita que a outra.
    Lucas apenas tirou a carteira e estendeu o cartão de credito à vendedora.
    - Vamos levá-lo.
    Ela ergueu uma sobrancelha, mas pegou o cartão e começou a fazer a transação.
    - Lucas! - segurei seu braço e tentei sussurrar. - Você não pode. 
    - Até posso.
    - Mas são duzentos dólares!
    - Você adorou - ele disse baixinho. - Dá pra ver no brilho dos seus olhos. Se o adorou, ele deve ser seu.
    O broche ainda estava em seu display. Fiquei olhando, tentando imaginar algo tão bonito sendo meu.
    - Eu adorei sim, Lucas, mas não quero que você faça uma divida por minha causa.
    - Desde quando gente sem grana frequenta a Noite Eterna?
    Tudo bem, fazia sentido. Por alguma razão, eu nunca tinha parado para pensar que Lucas podia ser rico. Vic também, provavelmente. Raquel era bolsista, mas estes eram poucos. A maioria dos alunos humanos estava na verdade pagando os olhos da carapela oportunidade de estar rodeados de vampiro, embora, é  claro, não soubessem deste detalhe. Eles não agiam de modo arrogante, provavelmente porque não tinham chance. os que de fato agiam como jovens ricos eram aqueles que haviam economizado grana por séculos, ou comprando ações da IBM quando a maquina de escrever ainda era uma invenção super-recente. A hierarquia da Noite Eterna era tão rígida - vampiros no topo, humanos indigno de atenção -, que não tinha percebido que os alunos humanos também eram gente de grana.
    Então me lembrei de que Lucas tinha tentado me contar como sua mãe podia ser controladora. Eles tinham viajado por todo lado, e até morando na Europa, e ele disseram que seu avô ou seu bisavó também  tinha estudado na Noite Eterna, ao menos até ser expulso por duelar. Eu devia ter notado que ele não era pobre.
    Não que isso fosse uma surpresa ruim. Em minha opinião, todos os namorados deviam ser  secretamente ricos. Mas isso me fazia lembrar que, por mais que adorasse Lucas, estávamos apenas começando a nos conhecer.
    E isso me faz lembrar também os segredos que eu mantinha.
    A vendedora quis embrulhar o broche, mas Lucas pegou-o e prendeu-o em meu casaco. Eu fiquei traçando as pétalas em alto-relevo com um dedo, enquanto chegávamos à praça da cidade, de mãos dadas.
    - Obrigada. É o melhor presente que alguém já me deu.
    - Então é a melhor grana que já gastei.
    Baixei a cabeça, envergonhada e feliz. Teriamos continuado sendo melosos por mais algum tempo, se não tivéssemos  chegado à praça e encontrado os alunos agitados ao redor do ônibus, conversando animados entre si e sem nenhum professor por perto.
    - Por que estão todos espalhados assim? Por que ninguém está embarcando ainda? 
    - Hã, não sei - Lucas piscou, desconcertado pela mudança súbita de assunto. Então, mas focado, continuou: - Você está certa, eles já deviam estar nos chamado.
    Juntamo-nos à multidão de alunos.
    - O que está acontecendo? - perguntei a Rodney, um cara que eu conhecia de Química.
    - É Raquel. Ela deu no pé.
    Não podia ser.
    - Ela não iria embora sozinha - disse eu. - Ela se assusta fácil.
    - Serio? Ela sempre me pareceu meio antissocial. - Vic juntou-se a nós, carregando uma sacola de plastico transparente cheia de gravatas chamativas. Então ele se interrompeu, como se percebesse que não seria educado falar mai de alguém desaparecido. - Eu a vi mais cedo, na lanchonete. Um cara local estava tentando puxar papo com ela, mas não estava se dando bem. Não cruzei mais com ela depois.
    Agarrei a mão de Lucas.
    - Você acha que esse cara pode ter feito algo a ela?
    - Ela pode estar só atrasada - Lucas tentou me tranquilizar, mas não conseguiu.
    - Ei, vai ver ele finalmente disse a coisa certa e ela está com ele agora - disse Vic, encolhendo os ombros.
    Raquel não faria isso. Ela era cautelosa e desconfiada demais para sair por impulso com um cara desconhecido. Senti-me culpa, desejando tê-la convidado para ficar com Lucas e comigo em vez de deixá-la sozinha.
    Meu pai chegou à praça , com a testa franzida. Percebi que ele estava ainda mais preocupado que eu.
    - Todo mundo entre no ônibus para voltar à escola. Encontraremos Raquel, não se preocupem - ele disse apenas.
    - Vou ficar e procurar por ela também - fui para perto de meu pai, afastando-me de Lucas. - Nós somos amigas, há alguns lugares onde ela pode estar.
    - Tudo bem - concordou meu pai. - Todos os demais, podem ir andando. 
    Lucas colocou a mão em meu ombro. Esta não era a despedida romântica que tínhamos planejado antes. Mas ele não estava desapontado de modo egoísta. Eu só via nele a preocupação por Raquel e por mim.
    - Também vou ficar, para ajudar vocês.
    - Eles não vão te deixar. Estou até surpresa que tenham me deixado.
    - É perigoso - ele disse baixinho.
    Meu coração se derreteu por ele, tão disposto a me proteger,sem desconfiar de como eu era capaz de me defender. Disse a única coisa que achei que o tranquilizaria.
    - Meu pai vai cuidar de mim - fiquei na ponta dos pés para dar-lhe um beijo no rosto e então passei os dedos pelo broche. - Obrigada. De verdade.
    Lucas não queria me deixar, mas a menção a meu pai funcionou. Ele me deu um beijo rápido.
    - Vejo você amanha.
    Enquanto o ônibus se afastava, meu pai e eu fomos apressados até os limites da cidade.
     - Você sabe mesmo para onde ela pode ter ido? - perguntou meu pai.
    - Nem ideia - admiti. - Mas você precisa de gente para ajudar na busca. Além do mais, e se for necessário cruzar o rio?
    Vampiros não gostam de água corrente. Eu não sentia incomodo algum, ou pelo menos ainda não, mas meus pais tinham sérios problemas para cruzar até o menor riacho.
    - Minha garotinha pode tomar conta de si - o orgulho de meu pai me pegou de surpresa, de um modo agradável. - Você está mesmo crescendo neste lugar, Bianca. Sua estada na Noite Eterna a está transformando, para melhor.
    - É o que acontece quando você sobrevive às adversidades - revirei os olhos, já cansada da rotina de papai sabe-tudo.
    - Novidade para você: isso é a adolescência.
    - Você fala como se tivesse passado por isso.
    - Acredite, a adolescência também era horrível no século onze. A humanidade muda o tempo todo, mas algumas coisas são constantes. As pessoas ficam idiotas quando se apaixonam; as pessoas querem o que não podem ter, e a idade dos doze aos dezoito é sempre, sempre uma droga - meu pai ficou serio de novo ao sairmos da estrada principal. - Não temos ninguém na marguem oeste do rio. Fique juntos ao rio se tiver medo de perder-se.
    - Eu não posso me perder - apontei para cima, para o céu brilhante e estrelado, onde todas as constelações esperavam para me orientar. - Vejo você mais tarde.
    Embora ainda não houvesse caído a primeira neve, o inverno já se apossara da paisagem. A terra sob meus pés estava dura de geada, e o capim morto e moitas desfolhadas arranhavam as pernas de meu jeans enquanto  eu caminhava pela margem do rio. Os troncos pálidos das faias destacavam-se em meio às outras árvores, como relâmpagos numa noite de tempestade. Terminei ficando bem perto da água, não porque tivesse receio de perder-me, mas porque Raquel poderia ter. Se tivesse vindo por aqui, ela teria segundo o rio para ter alguma orientação.
    Ela não teria se afastando assim. Se Raquel veio por aqui, não está apenas perdida.
    Minha imaginação hiperativa, sempre rápida em fornecer-me o pior cenário possível, ficava criando imagens terríveis em minha mente: Raquel assaltada por algum sujeito da cidade que queria roubar um dos "riquinhos" da escola. Raquel vencida por alguma tristeza que a perseguia, entrando nas águas geladas do rio e sendo sugada para baixo pela forte correnteza.
    Um som rápido e abafado acima de mim me fez dar um pulo, mas era apenas uma ave noturna voando de galho em galho. Respirei aliviada, e depois percebi que, mais para oeste, havia uma mancha mais clara entre os arbustos.
    Fui naquela direção correndo o mais que podia.Cheguei a abrir a boca para gritar o nome  de Raquel, mas fechei-a sem emitir qualquer som. Se fosse Raquel a frente, logo descobriria. Caso contrario, talvez não fosse bom chamar atenção.
     Ao aproximar-me, a respiração pesada pelo esforço,ouvi a voz de Raquel. Qualquer alegria que pudesse sentir foi destruída por suas palavras assustadas.
    - Me deixe em paz.
    - Ei, qual é o problema? - eu conhecia aquela voz, tão confiante com uma malicia zombeteira. - Do jeito que você age, nem parece que nos conhecemos.
    Era Erich. Ele não tinha vindo à cidade no ônibus da escola. Nenhum dos rapazes Noite Eterna viera. Eles pareciam achar chato,ou, mais provável, estavam apenas ansiosos para ficar a sós e poderem ser eles mesmos sem terem de esconder sua verdadeira natureza. No momento, porem, Erich parecia perto de mais da verdadeira natureza. Ele devia ter-nos seguido até Riverton e esperado para encontrar alguém que tivesse se afastado sozinho. E esse alguém era Raquel.
    - Já disse que não quero falar com você - Raquel insistiu. Ela estava aterrorizada. Em geral ela bancava a durona, mas estava abalada pela perseguição de Erich. - Então pare de me seguir.
    - Você age como se eu fosse um estranho - ele sorriu. Seus dentes eram brancos na escuridão, e lembrei-mede filmes que havia visto sobre tubarões. - Nós nos sentamos perto em Biologia, Raquel. Qual é o problema? Qual a pior coisa que eu poderia fazer?
    Agora eu sabia o que tinha acontecido. Erich havia encontrado Raquel sozinha na cidade e começou a segui-la. Em vez de esperar na praça como todo mundo, onde teria de suportar a presença dele ou talvez até ter de se sentar com ele no ônibus, ela tentou fugir. No processo, ela se afastou mais e mais do centro de Riverton, e depois da própria cidade. Por aquela altura ela já sabia que tinha cometido um erro, mas ele já tinha conseguido isolá-la. Ela já caminhara quase quatro quilômetros na direção da escola, a despeito do frio da noite, e senti uma ponta de orgulho por sua coragem e determinação.
    Tudo bem, tinha sido uma estupidez, mas ela tinha o direito de acreditar que um colega de classe não tentaria matá-la. 
    - Sabe de uma coisa - disse Erich, com naturalidade.- Estou com fome.
    A face de Raquel empalideceu. Ela não poderia entender o que Erich de fato dizia, mas deve ter sentido o que eu senti. O que tinha sido pura zombaria estava a ponto de virar outra coisa. A energia entre eles estava mudando de potencial para cinética.
    - Estou indo embora - disse ela.
    - Veremos para onde é que você vai - ele respondeu.
    - Ei! - gritei o mais alto que podia.
    Os dois viraram-se para me olhar. A face de Raquel num instante ficou aliviada.
    - Bianca!
    - Isto não  é da sua conta - disse Erich, com rispidez. - Afaste-se.
    Isso me surpreendeu. Achei que seria ele quem se afastaria, assim que fosse pego no ata. Parecia que não. Em geral, seria este o momento em que eu começaria a ficar aterrorizada, mas não fiquei. Senti a adrenalina correndo dentro de mim, mas não estava ficando gelada nem tremula. Em vez disso, meus músculos retesaram-se com o mesmo tipo de expectativa que antecede uma corrida. Meu olfato aguçou-se, e eu podia sentir o cheiro do suor de Raquel, a colonia pós-barba de Erich e até o odor da pele dos camundongos no meio dos arbustos. Engoli com força, e minha língua roçou minhas presas, que se alongavam devagar com minha agitação.
    Você vai começar a reagir como uma vampira, dissera minha mãe. Isto era parte daquilo a que ela se referia.
    - Não vou embora. Você vai -chegar mais perto deles, e Raquel cambaleou até mim, tremendo demais para conseguir correr.
    Erich fez uma careta de irritação. Parecia uma criança petulante a quem negaram um petisco depois das aulas.
    - O que, você é a única que pode quebrar as regras?
    - Quebrar as regras? - Raquel soou confusa, quase histérica. - Bianca, do que ele está falando? Podemos ir embora daqui, por favor?
    Empalideci. Ele sorriu para mim, sarcástico. Por fim reconheci a ameaça. Erich estava a ponto de contar a Raquel quem e o que nós dois eramos. Se ele revelasse o segredo da Noite Eterna, e convencesse Raquel de que eramos vampiros de verdade, coisa que as suspeitas anteriores dela tornavam muito possível, então ela fugiria de nós dois. Isso daria a ele uma oportunidade perfeita para mordê-la. Ele poderia até alegar tê-la mordido para apagar sua memoria. Poderia tentar impedi-lo com os instintos de luta que já sentia aguçado-se dentro de mim,mas eu ainda não era uma vampira de verdade. Erich era mais forte rápido que eu. Ele me derrotaria e teria Raquel. Tudo que teria de fazer seria dizer mais algumas palavras.
    - Vou contar tudo isso para a senhora Bethany - apressei-me  em dizer.
    O sorriso malévolo de Erich extinguiu-se em seu rosto. Até ele tinha o bom senso de temer a sra. Bethany. Depois de todos os discursos grandiloquentes sobre como todos deveriam manter os alunos humanos a salvo, para proteger a escola, a sra. Bethany não ia gostar nada da atitude de Erich.
    - Nao - disse ele. - Deixa para lá, ok?
    - Você deixa para lá. Cai fora daqui. Vá embora.
    Erich lançou um último olhar a Raquel e então sumiu na floreta sozinho.
     - Bianca! - Raquel tropeçou em meio aos últimos galhos que nos separavam. Passei depressa a língua por meus dentes, acalmando-me de forma parecesse e agisse como uma humana de novo. - Deus do céus, que há de errado com aquele cara? 
    - Ele é um idiota - era verdade, embora não fosse toda a verdade.
    - Quem persegue daquele jeito... - Raquel abraçou a si mesma com força. - Ele parecia que ia... Ai, nossa. Tudo bem. Tudo bem.
    Olhei através da escuridão para ter certeza de que Erich de fato estava indo embora. Seus passos haviam sumido, e eu já não podia mais ver seu casaco claro. Ele se fora, ao menos de momento, mas eu não confiava nele. 
    - Vamos - disse eu. - Vamos pegar um atalho.
    Passada demais para fazer perguntas, Raquel seguiu-me enquanto íamos rumo ao rio. Percorremos apenas meio quilometro até  achamos uma ponte estreita  de pedra. Parecia não ser usada com frequência havia muito tempo, e  algumas pedras estavam soltas, mas Raquel  não reclamou nem questionou enquanto eu a levava para outro lado. Erich poderia cruzar o rio se quisesse de verdade, mas sua aversão natural à água corrente, associada ao medo da sra. Bethany, quase com certeza seria suficiente para colocar-nos a salvo.
    - Como você está? - perguntei, já na outra margem.
    - Estou bem.
    - Raquel, me diz a verdade. Erich veio atras de você na floresta... você ainda está tremendo!
    - Eu estou bem! - sua pele estava pegajosa, mas ela insistiu, com voz estridente. Entreolhamo-nos em silêncio por um instante, e ela então acrescentou, num sussurro- Bianca, por favor. Ele não me tocou. Então está tudo bem.
    Algum dia Raquel  poeria estar pronta para falar sobre isso, mas não hoje. Hoje ela precisava sair daqui, e depressa.
     - Tá legal- disse eu. - Vamos voltar para a escola.
    - Nunca pensei que ficaria feliz em voltar para a Noite Eterna - a risada dela saiu incerta, porém. Começamos a caminhar, mas ela estacou: - Você não vai... chamar a policia, ou os professores, ou alguém? 
    - Contaremos à senhora Bethany assim que voltaremos.
    - Posso tentar ligar daqui. Tenho o meu celular, ele estava funcionando na cidade.
    - Não estamos mais na cidade. Você sabe que ele não pega aqui.
    - Isso é tão estupido - ela tremia tanto que seus dentes batiam. - Por que  essas vadiazinhas ricas não fazem as mamães e os papais pagarem para instalar uma torre? 
    Porque a maior parte delas ainda nem se acostumou  com os telefones normais, pensei.
    - Vamos lá, vamos embora - ela não me deixou passar o braço por seus ombros enquanto saímos da floreta gelada. Em vez disso, ela só ficou dando voltas em sua pulseira de couro.

Naquela noite, depois que Raquel se deitou, fui ver a sra. Bethany em seu escritório na cocheira. Dada a forma  desdenhosa como me tratava, imaginei que ela duvidaria de mim, mas não duvidou.
    - Tomaremos as providencias - disse. - Está dispensada.
    - Só isso? - hesitei.
    - Achar que permitirei que discuta a punição dele? Talvez a queira ministrar? - Ela ergueu uma sobrancelha. - Sei como manter a disciplina em minha própria escola, senhorita Olivier. Ou gostaria de escrever outro ensaio, como um lembrete?
    - Eu só quis dizer, o que vamos contar a todo mundo? Vão querer saber o que aconteceu com Raquel - eu já podia até ver a bela face de  Lucas, talvez se indagando uma vez mais se algo estranho estava acontecendo na Noite Eterna. - Ela vai dizer às pessoas que foi Erich. Teremos apenas que dizer que era uma brincadeira boba dele, ou algo assim, certo?
    - Parece razoável - por que ela tinha um ar tão divertido? Entendi o motivo quando a sra. Bethany acrescentou: - Está adquirindo pratica na arte de enganar os outros, senhorita Olivier. Algum progresso, finalmente.
    Fiquei com medo de que ela estivesse certa.

NOITE ETERNA                    DE CLAUDIA GRAYOnde histórias criam vida. Descubra agora