Capítulo Dezesseis

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    Fiquei sentada, entorpecida, no último degrau da escada, ouvindo os preparativos que tinham lugar a minha volta.
    O grupo da sra. Bethany tinha apenas cinco vampiros: ela, meus pais, Balthazar e o professor Iwerebon. Todos usavam pesadas capas de chuva e facas presas às coxas e aos antebraços.
    - Devíamos ter armas dizia Balthazar. - Para lidar com situações como esta. 
    - Tivemos de enfrentar " situações como esta" apenas duas vezes em mais de duzentos anos - disse a sra. Bethany, mais glacial que nunca. - Nossas habilidades em geral são mais do que suficientes para lidarmos com humanos. Ou não se sente à altura da tarefa, senhor More?
    Lucas é um caçador de vampiros. Lucas veio aqui para matar gente como meus pais. Ele me disse para não confiar neles; ele devia achar que haviam me roubado quando bebê. Ele tentou me afastar deles. Achei que estava apenas sendo grosseiro, mas quem sabe estava mesmo disposto a matá-los
    - Posso me virar muito bem - Balthazar disse. - Mas pode ser que Lucas esteja armado. Ele é da Cruz Negra. É impossível que não tenha vindo preparado. Em algum lugar da escola ele deve ter um esconderijo. Pode apostar que há armas lá.
    Quando subimos as escadas da torre norte, Lucas protestou o tempo todo. Achei que estivesse com medo de mim, mas não era nada disso. Até quando estávamos nos beijando no chão ele pediu que da próxima vez procurássemos outro lugar.
    - Os aposentos no alto da torre norte - minha voz soou estranha, como se não fosse minha de verdade. - O esconderijo dele é lá.
    - Você já sabia disso? - a sra. Bethany aprumou-se.
    - Não, é só um palpite.
    - Vamos verificar - Balthazar estendeu a mão para ajudar-me a levantar. - Venha.
    O lugar não parecia nada diferente de quando Lucas e eu estivemos lá juntos. A sra. Bethany fechou os olhos por um instante, desanimada.
    - A sala de registros. Se esteve aqui , ele leu quase toda a nossa história. Os locais de refúgio de tantos de nós... Agora, a Cruz Negra sabe.
    - Muitos desses registros estão desatualizados há décadas - ponderou meu pai - Os anos mais recentes estão no computador.
    - Eu acho que ele também teve acesso a eles - disse eu, lembrando-me do dia em que o encontrei esgueirando-se para fora do escritório da sra. Bethany, na cocheira.
    A sra. Bethany voltou-se para mim, claramente a ponto de estourar. 
   - A senhorita sabia que Lucas Ross estava infringindo normas, e ainda assim nunca alertou a ninguém com autoridade. Deixou que um membro da Cruz Negra andasse à  solta na Noite Eterna por meses, senhorita Oliver. Não pense que vou esquecer-me disso.
    Quando ela falava comigo daquele jeito, em geral eu me encolhia de medo. Desta vez, contra-ataquei.
    - Foi a senhora quem o aceitou aqui, em primeiro lugar!
    Ninguém disse nada por um instante. Eu havia falado só para me defender, mas então percebi que a sra. Bethany tinha feito besteira, uma besteira realmente imensa, e que sua tentativa de colocar a culpa em mim acabava de falhar.
    Em vez de me estrangular, a sra. Bethany aprumou-se e voltou sua atenção à busca.
    - Abram cada caixa. Olhem em cada armário e nas traves do telhado. Quero descobrir tudo ou que o senhor Ross mantinha aqui em cima.
    Lembranças de nós dois juntos quase me sufocaram, mas concentrei-me em um momento em particular. Quando acabávamos de entrar aqui, Lucas de imediato sentou-se em cima de um grande baú encostado na parede. Achei que ele apenas tivesse vontade de sentar-se, mas talvez tivesse outro motivo: impedir-me de abrir o baú.
    Balthazar seguiu meu olhar. Ele não disse nada, mas ergueu uma sobrancelha inquisitiva. Fiz que sim com a cabeça; ele foi até o baú e abriu sua tampa. Não pude ver o que havia dentro, mas minha mãe arquejou e o professor Iwerebon praguejou baixinho.
    - O que é? - perguntei.
    A sra. Bethany aproximou-se e olhou dentro do baú. Sua face permaneceu impassível enquanto ela se ajoelhava e erguia um crânio.
    Gritei, e na mesma hora me senti uma idiota por isso.
    - Isso deve ser bem antigo. Quero dizer, vejam sua aparência.
    - Quando morremos, nossos corpos se decompõem muito depressa, senhorita Oliver. - A sra. Bethany continuava virando o crânio de um lado e de outro, fazendo-me pensar em suas aulas sobre Hamlet. - Para ser exata, nós nos decompomos até o estado em que estaríamos a partir de nossa morte humana. Embora a carne já tenha desaparecido, ainda há alguns fragmentos de pele, e isso sugere que este crânio pertencia a um vampiro que morreu há algumas décadas, talvez um século.
    - Erich - disse Balthazar de repente. - Uma vez ele disse que havia morrido na Primeira Guerra Mundial. Lucas e Erich odiavam um ao outro. Se Lucas o atraiu para cá, e Erich não fazia ideia de quem estava enfrentando um caçador da Cruz Negra, então não haveria nem luta.
     - Não se Lucas tivesse uma destas - meu pai havia aberto outra caixa e tirara de dentro uma enorme faca... não, um facão. - Esta coisa pode fazer um serviço rápido com qualquer um de nós.
    Balthazar deu um assobio baixo ao olhar a lâmina.
    - Aqueles dois costumavam brigar, mas Erich sempre levava a melhor. Ou Lucas perdia de propósito ou ele sabia que, se mostrasse tudo de que era capaz, nós desconfiaríamos dele.
    - Pensei que Erich tinha fugido - protestei. Tinha que ser isso. Lucas e Erich brigavam, mas Lucas não poderia tê-lo matado.
    - Todos pensamos isso, mas estávamos equivocados - a sra. Bethany deixou o crânio de Erich cair de volta no baú, sem nenhuma cerimônia. - Continuem a busca.
    Os outros fizeram o que ele dizia. Trêmula, cheguei perto do baú para olhar dentro. Havia um monte de ossos, um uniforme empoeirado da Noite Eterna e, a um canto, algo marrom. Com um choque percebi que era a pulseira de couro que Raquel tinha perdido. Lucas não a teria roubado. Não, Erich a pegara e estava com ela quando morre.
    Quando Lucas o matou.
    - Bianca? querida? - minha mãe veio para o meu lado. Ela usava jeans e botas. Em geral ela se recusava a vestir o que ainda considerava roupas masculinas, mas, para capturar Lucas, ela abrira uma exceção. - Você devia ir para nosso apartamento. Você não precisa ver mais nada disso.
    - Ir para o apartamento e fazer o quê? Ler um lindo livro? Ouvir música? Não mesmo. 
    - Nós podemos segui-lo mesmo com a chuva. Você jamais dirá nada a ninguém desta escola sobre o que está acontecendo esta noite - a sra. Bethany cravou-me o olhar por cima do ombro de Iwerebon.
    Fechei devagar a tampa do baú.
    - Eu também vou.
    - Bianca? - minha mãe sacudiu a cabeça. - Você nunca fez nada assim, e a Cruz Negra... Eles são bons. Lucas pode ser jovem, mas sabe o que faz. Isso é bem evidente.
    - Balthazar é educado demais para dizer que isto é perigoso - meu pai estava furioso. Seu nariz estava vermelho e inchado, provavelmente quebrado. Até nos vampiros os ferimentos demoram algum tempo para sarar. - Lucas Ross pode feri-la, pode até matá-la.
    Estremeci, mas fiquei firme.
    - Ele pode matar qualquer um de vocês, e ainda assim vocês vão.
    - Vamos cuidar disso - insistiu Balthazar. - O pior de tudo foi o que ele fez a você, Bianca. Seus pais não vão deixá-lo sair impune nem eu.
    A senhora Bethany ergueu uma sobrancelha. Era evidente que ela não achava meu coração partido " o pior de tudo", e eu esperava que ela me humilhasse, como sempre.
    - Ela pode ir conosco - disse ela, porém.
    Minha mãe encarou-a.
    - Ela é só uma criança!
    - Ela teve idade suficiente para morder um humano. Idade suficiente para dar poderes a ele. Assim, tem idade suficiente para encarar as consequências. - Seu olhar caiu sobre mim. - Vai precisar de uma arma, senhorita Oliver?
    - Não - eu não podia me imaginar enterrando uma faca no corpo de Lucas.
    A sra. Bethany interpretou mal minhas palavras, talvez de propósito.
    - Creio que será realmente conveniente que complete sua transformação esta noite.
    - Esta noite - meus pais exclamaram juntos.
    - Todos os filhos acabam crescendo.
    Ela quer que eu morda Lucas de novo. Desta vez, ela quer que eu o mate. Eles colocarão fogo em seu corpo antes que possa erguer-se de novo como vampiro. Lucas vai desaparecer para sempre.
    A sra. Bethany foi até a porta e abriu-a. Balthazar colocou uma capa de chuva sobre meus ombros e lutei para enfiar meus braços nas mangas longas demais.
    - Vamos.
    Descemos as escadas e demos inicio à nossa jornada rumo A escuridão.
    Meus pais me contaram que eram vampiros assim que tive idade suficiente para saber guardar um segredo, de modo que isso era tão normal para mim como o fato de ela ter cabelo cor de caramelo e ele gostar de estalar os dedos ao ouvir jazz dos anos 50. Eles tomavam sangue à mesa de jantar em vez de comer comida e gostavam de relembrar barcos a vela, rocas de fiar e, no caso de meu pai, da vez em que ele assistiu a William Shakespeare atuando em uma de suas próprias peças. Mas esses eram detalhes, mais curiosos e engraçadinhos que assustadores. Nunca me pareceram antinaturais.
    Assim que iniciamos a perseguição, me dei conta de como os conhecia mal.
    Eles se moviam muito mais rápido do que eu, mais rápido do que qualquer humano. Lucas e eu achávamos que estávamos indo até o limite de nossos poderes quando corríamos pela região algumas semanas atrás, mas aquilo não era nada comparado com isto. Meus pais, Balthazar, cada um deles, todos corriam com segurança, apesar da lama, e conseguiam ver o caminho na escuridão. Eu tinha que me valer dos clarões dos relâmpagos e de suas vozes para guiar-me.
    - Aqui - o sotaque nigeriano do professor Iwerebon ficava mais forte quando ele estava agitado. - O rapaz foi por aqui.
    Como podia eles saber? Percebi que mão de Iwerebon estava pousada sobre os ramos de um arbusto. Quando também o toquei, pude sentir os brotos das folhas novas, felpudos contra a palma gelada da minha mão. Um dos galhos estava partido. Lucas o quebrara ao passar correndo por ali.
    Ele está correndo para salvar sua vida. Lucas deve estar aterrorizado.
    Ele disse que me amava.
    Mais um raio caiu, tornando a noite clara como dia por uma fração de segundo. Podia ver a silhueta da sra. Bethany contra a floresta sombria e reconheci o suficiente dos arredores para perceber que estávamos perto do rio. Era a primeira vez, já havia um bom tempo, que eu sabia onde estávamos, pois as nuvens de chuva escondiam as estrelas.
    - Esta não é uma da trilhas que os alunos costumam percorrer - disse a sra. Bethany. - A Cruz Negra treinou-o bem o bastante para que ele tivesse um plano de fuga. Isso significa que ele marcou esta rota de antemão.
    Um trovão estrondou sobre nós, abafando a resposta do professor Iwerebon. Fatigada, fiz força para tirar meus pés da lama onde estavam afundado; Balthazar segurou-me pelo ombro, amparando-me enquanto eu buscava um terreno mais sólido.
    Todo esse tempo achei que Lucas estava me protegendo, mas, em vez disso, ele me colocou em perigo. Será que tudo isso é verdade?
    Então os dedos de balthazar pressionaram meu braço:
    -Por aqui. Venha.
    Quando um relâmpago cruzou o céu de novo, vi o que Balthazar vislumbrara: buracos na lama, do tamanho de um pé, indo até o rio. Lucas tivera que puxar os pés para fora da lama, como eu. A despeito dos novos poderes que tínhamos, ele não era tão veloz nem tinha a mesma leveza etérea dos vampiros que me rodeavam. Lucas era só um rapaz que corria o mais rápido que podia no meio de uma tempestade terrível, sabendo que, , se fosse pego, poderia morrer.
    Chovia forte demais para que pegadas como aquelas durassem muito tempo. Nós  estávamos quase conseguindo alcançar-lo.
    Ele mentiu para mim desde o começo. Desde o primeiro dia. todo o medo que eu tinha por estar escondendo segredos, e Lucas estava me fazendo de idiota a cada vez que nos beijávamos.
    - Depressa! - a sra. Bethany apressava-nos para que seguíssemos em frente. Apesar de sua longa saia, ela podia se mover mais rápido que todo mundo. Fui ficando para trás, ofegando, gelada até a medula, mas consegui ficar perto o suficiente para ouvir a chuva batendo em suas capas. - Ele já deve ter cruzando o rio.Isso vai nos atrasar.
    O rio. 
    Desde que era pequena, ouvia as brincadeiras de meus pais sobre como a água corrente era terrível. Quando viajávamos de carro, sempre procuravam fazer algum caminho que nunca cruzasse o rios. Se fosse necessário, eles podiam fazê-lo, mas em geral demorava um pouco. Meu pai parava o carro no acostamento assim que víamos uma ponte, minha mãe mordia as unhas de ansiedade e eu ficava rindo deles durante todo o tempo que levam para reunir coragem, por volta de maia hora. Descreviam a viagem de navio para o Novo Mundo como a pior experiência que haviam enfrentado.
    Vampiros têm dificuldade para cruzar água corrente. Alguns dos alunos humanos discutiam por que os professores iam para Riverton ates de nós, mas eu sempre soube que era porque eles queria cruzar a ponte em seu próprio ritmo, sem revelar como aquilo os abalava. Agora eu percebia que Lucas também sabia, e ele estava contando com isso para manter-se vivo.
    Fomos em  frente até que os outros pararam à minha frente. Já não precisava dos relâmpagos para me mostrar o caminho. Respirando pesado, alcancei-os e passei pelo professor Iwerebon, por Balthazar, por meus pais e finalmente pela sra. Bethany, que estava a apenas alguns passos da ponte.
    - Pare e espere-nos. Continuaremos em breve - ela ordenou. Apertou os lábios, talvez tentando forçar-se a superar sua única fraqueza.  
    - Ele vai fugir - passei por ela.
    - Senhorita Olivier! Pare já!
    Meus pés tocaram a ponte. As velhas tábuas encharcadas pela chuva eram mais fáceis de cruzar do que a lama espessa.
    - Bianca! - disse meu pai . - Bianca, espere por nós. Você não pode fazer isso sozinha.
    - Posso, sim - comecei a correr, a chuva batendo em meu rosto, o lado do corpo doendo pelo esforço, e a capa de chuva pesada em meus ombros. Tudo o que eu queria era cair sobre a ponte e chorar. Meu corpo não tinha forças para isso.
    Mas mesmo assim eu corri. Corri embora minhas pernas estivessem pesadas como chumbo, e minha garganta apertada com as lágrimas que não chorara, e meus pais, meus professores e meu amigo estivessem todos gritando para que eu voltasse. Corri apesar de tudo, e a cada passo ia mais rápido.
    Desde que viera para a Noite Eterna - não, na verdade durante toda minha vida -, eu sempre confiei nos outros para resolverem meus problemas. Ninguém podia resolver esse para mim. Eu tinha que o enfrentar por mim mesma, sozinha.
    Eu não sabia se estava perseguindo Luscas ou correndo para ele. Só sabia que tinha de correr.
Depois que cruzei o rio, não tive dificuldade para rastrear Lucas por conta própria. Estava escuro, e eu não tinha visão e nem a audição extrassensíveis dos vampiros de verdade. No entanto, era óbvio que ele estava indo para Riverton, e havia poucas trilhas que poderia ter tomado. Lucas devia saber que não tinha tempo a perder e is querer afastar-se o mais depressa possível.
    Eu havia passado algum tempo no terminal de ônibus com Raquel, antes que ela partisse no Natal, quando Lucas já se fora. Embora ela estivesse ansiosa para sair da Noite Eterna, sua família não chegaria em casa até tarde, de modo que tivemos de ficar esperando pelo ônibus que partiria para a área de Boston às 20:08. Eram quase oito da noite agora. Eu tinha certeza de que Lucas tentaria pegar o ônibus desse horário. O seguinte não devia sair senão daí umas duas horas, e seria arriscado demais. A sra. Bethany e os outros já o teriam encontrado por essa altura. O ônibus para Boston era a única chance real de Lucas escapar.
    O centro da cidade estava quase vazio. Não havia carros nas ruas, e as poucas lojas que insistiam em ficar abertas estavam às moscas. Ninguém queri estar fora de casa numa noite como aquela. Com meu cabelo ensopado de chuva, eu não os culparia. Olhe algumas das lojas abertas, mas Lucas não estava em nenhuma delas.
    Não, percebi. Ele sabe que é onde eles vão procurar primeiro.
    Eu sabia então tinha uma vantagem sobre a sra. Bethany e meus pais, algo que mesmo seus séculos de experiencia e sentindo sobrenaturais não poderia dar-lhes. Eu conhecia Lucas; isso queria dizer que eu sabia o que ele faria.
    Eles também deveriam imaginar que ele não tentaria esconder-se em publico. Eles podiam até mesmo deduzir o que eu deduzi, que Lucas iria esconder-se o mais perto possível do terminal de ônibus, de forma que não se expusesse por tempo demais na cidade, antes de conseguir embarcar no ônibus e escapar. O terminal, porém, ficava bem no centro da cidade. Havia uma dúzia de loja ao seu redor,e, pelo que sabiam, ele podia estar em qualquer uma.
    Lucas tinha ido comigo ver um filme antigo e me comprou o broche na loja de roupas usadas.E ele disse que me amava.
    Isso queria dizer que talvez, apenas talvez, ele tivesse escolhido o mesmo lugar que eu escolheria para me esconder.
    Pulando por cima das poças de aguá, fui até o brechó, que ficava na esquina sudeste da praça. Qualquer dúvida que tivesse desapareceu assim que cheguei à porta de trás da loja e a encontrei entreaberta.Abri-a devagar. As dobradiças não rangeram, e pisei com cuidado nas tábuas do assoalho. Com as luzes apagadas, a escuridão era quase completa lá dentro. Eu mal conseguia distinguir os vultos do estranhos itens que me rodeavam. No começo não acreditei em meus olhos; uma armadura, uma raposa empalhada, um taco de críquete. Percebi que a bagunça não era aleatória. Aquele era o depósito da loja, com os produtos menos procurados pelos clientes. Parecia completamente surreal, como se de alguma forma eu houvesse caído em um pesadelo, enquanto desperta.
    No começo tentei fazer silêncio, mas, quando entrei mais na loja, percebi que podia ser perigoso. Lucas podia atacar qualquer outra pessoa que viesse atrás dele, mas eu ainda acreditava que não me faria mal.
    - Lucas?
    Nenhuma resposta.
    - Lucas, sei que você esta aqui - ainda nenhuma resposta, mas eu percebia que agora estava sendo observada. - Estou sozinha. Eles não estão longe. Se tiver algo a me dizer, é melhor que seja agora.
    -  Bianca.
    Lucas disse meu nome num  suspiro, como se estivesse cansado demais para pronunciá-lo. Esquadrinhei a escuridão, mas não pude vê-lo; sabia apenas que sua voz vinha de algum ponto à minha frente.
    - É verdade o que estão dizendo de você?
    - Depende do que estão dizendo- eu ouvia passos agora, vindo devagar em minha direção.
    Pousei minha mão trêmula no objeto mais próximo que podia usar para me apoias, uma cadeira revestida com veludo já gasto.
    - Eles dizem que você é membro de um grupo chamado Cruz Negra. Caçadores de vampiros. Que você mentiu pra m... para todos nós.
    - É tudo verdade - Lucas soava mais cansado do que eu jamais o ouvira. - Você falou a verdade quando disse que estava sozinha? Não vou culpá-la se mentiu.
    - Eu só menti para você uma vez. Não estou fazendo isso de novo agora. 
    - Uma vez? Posso me lembrar de um monte de vezes em que você se "esqueceu" de mencionar que era uma vampira.
    - Como você, que nunca disse que era um caçador de vampiros - eu podia ter batido nele.
    - Acho que sim. Acho que no fundo é o mesmo tipo de coisa - minha ira pareceu não impressioná-lo nem um pouco.
    - Eu contei toda a verdade naquele e-mail! Não deixei nada de fora!
    - Porque você tinha sido descoberta. Não conta, e você sabe.
    Por que ele continuava insinuando que éramos iguais?
    - Não escolhi ser o que sou. Você e seu grupo planejam exterminar meus pais, meus amigos...
    - Eu também não escolhi, Bianca - sua voz estava rouca, como se ele estivesse contendo o c horo, e minha fúria dissolveu-se em outra emoção que não consegui identificar. Lucas deu mais alguns passos para a frente. Quando apertei os olhos para ver no escuro, entrevi sua silhueta a alguns metros. - Nem quem ou o que eu sou, tampouco vir para a Noite Eterna.
    - Você escolheu ficar comigo - embora ele tivesse tentado me convencer a desistir não é? Só agora eu entendia o porquê.
    -É, escolhi. E sei que a magoei. Desculpe-me por ter feito isso. Você é a última pessoa no mundo que eu gostaria de ferir.
    Ele parecia completamente sincero. Eu desejava acreditar nele mais do que qualquer coisa que já houvesse desejado na vida. Depois das revelações daquela noite, porém, eu já não teria fé em mais nada.
    - Você pode me dizer por quê?
    - É uma explicação demorada, e não temos tanto tempo assim.
    O ônibus das 20:08 para Boston. Olhei meu relógio. Os ponteiros fosforescentes me diziam que não tínhamos mais cinco minutos.
    Fui em direção a Lucas, as mãos diante de mim tateando o caminho. Meus dedos roçaram plumas de avestruz, empoeiradas pelo tempo, e algo fino, metálico e frio, talvez uma armação de cama  de latão. Lucas move-se para a esquerda, atrás de um painel... Não, eu podia entrevê-lo do outro lado. Quando cheguei perto, percebi que era uma janela de vidros coloridos.
    Estávamos na parte da frente do brechó, menos atulhada de coisas e um pouco mais iluminada. A luz fraca e esverdeada da iluminação da rua infiltrava-se até nós. Lucas ficou atrás da janela de vidros coloridos. Estaria com medo de mim? Com vergonha de encarar-me? Em vez de rodear a janela, aproximei-me pelo lado oposto ao dele, de forma que nos víamos através dos vidros coloridos. O rosto de Lucas estava dividi em quatro quadrados coloridos, e seus olhos estavam sombrios e assustados.
    Por um instante, nenhum de nós soube o que dizer. Então, Lucas deu-me um sorriso triste.
    - Oi.
    - Oi - sorri também e quase comecei a chorar.
    - Por favor, não faça isso.
    - Não vou fazer - um soluço escapou, mas então engoli com força e mordi o lado da língua. Como sempre, o gosto do sangue me deu forças. - Estou em perigo?
    Lucas fez que não com a cabeça. Através do vidro seu rosto tinha a cor de joias - topázio, safira e ametista.
    - Não por minha causa.Nunca por mim.
    - Diga isso a Erich.
    - Então vocês o encontraram - Lucas não soava nem um pouco arrependido. - Erich estava perseguindo Raquel, lembra-se? Quando a ouvi contando que havia perdido a pulseira, tive certeza de que ela não teria muito tempo mais. O roubo de pertences é um sinal clássico de que um vampiro perseguidor está a ponto de atacar. Erich queria matá-la e, se tivesse chance, iria fazê-lo. No fundo, acho que você sabe disso.
    Assustava-me o fato de acreditar nele. Se eu não tivesse provado o sangue de Erich e sentido por mim mesma sua maldade, talvez não acreditasse. Mas eu havia visto o mal n a mente dele, e suspeitava que Lucas dizia a verdade, ao menos sobre isso:
    - Ainda é duro pensar sobre isso.
    - Entendo. Sei que é difícil para você assimilar.
    - Diga-me o que eu preciso saber.
    Lucas ficou em silêncio um momento, e eu não tinha certeza de que fosse responder. No instante em que me resignei a desistir, porém, ele começou a falar.
    - No início menti para você pelo mesmo motivo que você mentiu para mim. A Cruz Negra é um segredo que tenho mantido durante toda minha vida, algo a que fui destinado por minha mãe quando nasci - a voz de Lucas estava distante, e ele parecia perdido em suas lembranças. - Eles me ensinaram a lutar e a ter disciplina. Enviaram-me em missões quando eu já tinha idade suficiente para segurar uma estaca.
    Lembrei-me do que Lucas me contara no passado, sobre sua  mãe ser durona, e como ele às vezes sentia que não era dono de suas próprias decisões. Depois de tanto tempo, por fim eu entendia o que ele queria dizer. Mesmo aos cinco anos de idade, quando fugiu de casa, ele levou uma arma.
    - No início, achei que você era uma das alunas humanas da escola. Quando você me contou sobre seus pais, pensei que eles tinham matado seus pais verdadeiros e a adotado. Imaginei que você não sabia o que eles eram de verdade - nossos olhos se encontraram através do vidro colorido e seu sorriso era triste. - Disse a mim mesmo para afastar-me de você, para seu bem, mas não conseguir. Era como se você fosse parte de mim, quase desde o segundo em que nos conhecemos. A Cruz Negra teria mandado que desse as costas a você, mas eu estava cansado de manter todo mundo a distância. Uma vez na minha vida queria estar com alguém  sem me preocupar com o que aquilo significaria para a Cruz Negra. Viver como uma pessoa normal por algum tempo. Depois de nossa primeira conversa... acredita que achei que você fosse uma garota doce e normal?
    Isso era ao mesmo tempo a coisa mais engraçada e mais triste que eu já ouvira.
    - Agora você sabe de tudo - disse eu.
   - O que você é... não me importa. Eu já disse isso, e estava falando a verdade - ele se voltou para a jan ela, de modo que eu podia ver seu perfil, e a preocupação ali estampada. - Tenho mais coisas para dizer, mas o ônibus já vai partir. Droga, quem sabe se eu pegar o próximo...
    - Não! - apertei as mãos contra o vidro colorido. Embora eu ainda não soubesse se algum dia voltaria a confiar em Lucas, sabia agora que nunca poderia feri-lo, e muito menos ficar assistindo enquanto a sra. Bethany e meus pais tentassem matá-lo. - Lucas, os outros não estão muito atrás de mim. Não espere. Fuja rápido. 
    Lucas devia ter saído correndo aquele instante. Em vez disso, ele me olhou através do vidro e abriu a mão devagar, do outro lado da barreira, de forma que nossas mãos tocavam o mesmo ponto do vidro, dedos com dedos, palma com palma. Ambos nos aproximamos, e nossos rostos ficaram a poucos centímetros de distância. Mesmo com o vidro colorido entre nós, a sensação de intimidade foi tão forte quando qualquer beijo que tivéssemos trocado.
    - Venha comigo - disse ele, baixinho.
    - O quê? - pisquei os olhos, incapaz de entender o que ele propunha. - Você quer dizer... fugir de casa? De verdade? Como sugeriu que eu fizesse naquele primeiro dia? 
    - Só para que eu possa lhe falar sobre tudo que aconteceu e... para que a gente possa dizer adeus como se deve, em vez de... - Lucas engoliu em seco, e pela primeira vez notei que ele estava tão inconformado e assustado quanto eu. - Tenho o suficiente para comprar passagens para nós dois. Mais tarde posso conseguir mais dinheiro para que você volte para casa, se quiser. Podemos sair neste segundo. Atravessamos a rua correndo e subimos no ônibus. Vamos embora daqui juntos.
    - Você vai me entregar para a Cruz Negra?
    - O quê? Não! - pela forma como disse isso, parecia mesmo que a ideia nunca passara por sua cabeça. - Para um humano, você parece humana. Vou protegê-la se vier comigo.
    - Diga-me uma coisa antes que eu responda - disse eu lentamente.
    - Tá legal, pergunte - Lucas parecia desconfiado.
    - Você disse que me amava. Estava dizendo a verdade?
    Se ele havia mantido sobre todo o resto, achei que eu podia aguentar, desde que soubesse a verdade.
    Ele soltou a respiração, não exatamente uma risada nem um soluço.
    - Meu Deus, sim . Bianca, eu te amo tanto. Mesmo que nunca mais te veja, mesmo que a gente saia daqui e caia numa emboscada que você armou com seus pais, eu sempre vou te amar. 
    No meio de todos as mentirar, afinal eu ouvia uma verdade.
    - Eu também te amo - disse eu. - Precisamos correr.

NOITE ETERNA                    DE CLAUDIA GRAYOnde histórias criam vida. Descubra agora