Capítulo Um

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    Aquele era o primeiro dia de aula, o que significava que era minha última chance de escapar.
    Eu não tinha uma mochila cheia de equipamentos de sobrevivência, nem uma carteira recheada de dinheiro que poderia usar para comprar uma passagem aérea para qualquer lugar, nem um amigo esperando por mim na estrada com um carro. Ou seja, eu não tinha o que a maioria das pessoas em seu juízo perfeito chamaria de "um plano".
    Mas isso não importava.De maneira alguma eu permaneceria na escola Noite Eterna.
    A luz da manhã havia acabado de tingir o céu quando vesti meu jeans e apanhei um grosso suéter negro. Cedo daquele jeito, ali no alto das colinas fazia frio até em setembro. Prendi meus longos cabelos ruivos num coque improvisado e calcei minhas botas de caminhada. Pareceu-me importante manter silêncio total, mesmo que não tivesse de me preocupar com a possibilidade de meus pais acordarem àquela hora. Eles não eram pessoas matinais, para dizer o mínimo. Ambos dormiriam como os mortos até que o despertador os acordasse, p que só aconteceria daí a umas duas horas.
    Isso me daria uma boa vantagem.
    Do lado de fora da janela de meu quarto, a gárgula de pedra me encarava, as presas emoldurando suas feições retorcidas. Mostrei-lhe a língua enquanto pegava minha jaqueta jeans.
    - Talvez você curta ficar pendurada do lado de fora da Fortaleza dos Malditos - murmurei. - Pois esteja à vontade.
    Antes de sair, fiz minha cama. Em geral seria necessário que me perturbassem muito para que fizesse isso, mas desta vez eu quis. Sabia que hoje  assustaria demais meus pais, e ajeitando as cobertas era como se me desculpasse um pouquinho com eles. Provavelmente eles não veriam a coisa dessa forma, mas fui enfrente mesmo assim. Enquanto arrumava os travesseiros, tive um vislumbre rápido e estranho de algo que havia sonhado durante a noite, tão vívido e imediato como se ainda estivesse sonhando.
    Uma flor da cor do sangue.
    O vento uivava entre as árvores ao meu redor, os galhos açoitando em todas as direções. O céu agitava-se acima de mim, com espessas nuvens escuras. Afastei o cabelo que o vento jogava contra meu rosto. A única coisa que desejava era olhar a flor.
    Cada pétala salpicada de chuva era de um vermelho intenso, delgado estreita,como em certas orquídeas tropicais. A flor era exuberante e vistosa e prendia-se bem próxima ao ramo, como uma rosa. Era a coisa mais exótica e fascinante que eu já tinha visto. Ela tinha que ser minha.
    Por que aquela recordação me causava arrepios? Era só um sonho. Respire fundo e concentrei-me. Hora de partir. Minha bolsa de viagem estava pronta, eu a tinha preparado na noite anterior. Umas poucas coisas... Um livro, óculos de sol e algum dinheiro, caso eu precisasse chegar ate Riverton, que era a coisa mais parecida com civilização naquela área. Aquilo me manteria ocupada o dia todo.
    Veja bem, eu não estava fugindo. Não de verdade, como quando você desaparece e assume uma nova identidade e , sei la, junta-se ao circo ou algo assim. Não, eu estava deixando clara minha posição. Desde que meus pais sugeriram pela primeira vez que viéssemos para a escola Noite Eterna, eles como professores e eu como aluna,fui contra. Tínhamos morado na mesma cidadezinha durante toda a minha vida, e eu havia frequentado a mesma escola, com as mesmas pessoas, desde os cinco anos de idade. Era assim que eu queria. Existem pessoas que curtem encontrar estranhos, que conseguem estabelecer uma conversação e fazer amigos muito rápido, mas nunca fui uma delas. De modo algum.
    É engraçado, quando as pessoas chamam você de " tímido", elas em geral sorriem. Como se fosse uma coisa engraçadinha, algumas pequena mania da qual você vai se livrar depois de grande, como as falhas quando os seus dentes de leite caem. Se soubessem como é ser tímido de verdade - e não apenas inseguro ao ser apresentado a alguém -, elas não sorririam. Não se soubessem como aquela sensação dá um nó em seu estômago, ou faz suar as palmas das mãos, ou rouba sua habilidade de dizer qualquer coisa com sentido. Não é nada engraçadinho.
    Meus pais nunca sorriram ao dizer isso, e sempre achei que entendiam, até que decidiram que dezesseis anos era a idade certa para que de algum modo eu superasse aquilo. Que melhor ponto de partida que um internato... especialmente com eles juntos?
    Eu podia entender o objetivo deles, mais ou menos. Ainda assim, essa era a teoria. Assim que começamos a subir pelo caminho que dava acesso à escola Noite Eterna, e vi aquele enorme e maciço monstro gótico de pedra, percebi que de modo algum poderia estudar ali. Minha mãe e meu pai não me deram ouvidos. Eu precisava fazê-los entender.
    Na ponta dos pés, percorri o pequeno apartamento destinado aos professores, onde minha família estava morando havia um mês. Por trás da porta fechada do quarto de meus pais, podia ouvir minha mãe roncando suavemente. Perdurei a bolsa no ombro, girei devagar a maçaneta e comecei a descer as escadas. Morávamos bem no alto de uma das torres do Noite Eterna, mas não era algo tão legal como parece. Isso queria dizer que eu precisava descer por degraus que haviam sido entelhados na pedra mais de dois séculos atrás, tempo suficiente para ficarem gastos e irregulares. A longa escada em espiral tinha poucas janelas, e a iluminação ainda não estava acesa, o que tornava meu percursos escuro e difícil.
   Quando tentei pegar a flor, a folhagem moveu-se. O vento, pensei, mas não era o vento. Não, a folhagem estava crescendo, tão depressa que eu conseguia ver seu crescimento. Trepadeiras e espinheiros urgiram por entre s folhas, em um emaranhado ameaçador. Antes que eu pudesse correr, a folhagem quase havia me cercado, aprisionando-me entre galhos, folhas e espinhos.
    A última coisa de que eu precisava naquele momento era relembrar meus pesadelos. Respirei fundo e continuei descendo até chegar ao salão principal, no térreo. Era um ambiente imponente, construído para impressionar quem o visse: o piso revestido de mármore, o teto alto em arcos e janelas de vitrais coloridos indo de alto a baixo, cada uma com padrão caleidoscópico diferente - exceto uma, bem no meio, que era de vidro incolor. Os preparativos para a cerimônia daquele dia deveriam ter sido feitos na noite anterior, porque havia um palanque pronto para a diretora receber os alunos, que chegariam mais tarde. Ninguém mais parecia ter acordado, o que significava que não havia ninguém para me barrar. Com um puxão forte, abri a porta de entrada, pesada e toda entalhada, e então estava livre.
    O nevoeiro cinza- azulado do começo da manhã envolvia o mundo, enquanto eu percorria o gramado da escola. Quando construíram a escola Noite Eterna, no século dezoito, esta era uma área selvagem. Agora, vilarejos pontinhavam toda a região, mas nenhum estava muito próximo à Noite Eterna. Apesar da paisagem cheia de colinas e das florestas densas, jamais haviam construído casa alguma na vizinhança. Quem culparia as pessoas por não quererem nem chegar perto daquele lugar? Olhei para trás, para as altas torres de pedra da escola, ambas adornadas com as formas retorcidas de gárgulas, e tive um calafrio. Alguns passos mais, e elas começaram a sumir na névoa.
    A Noite Eterna erguia-se ameaçadora atrás de mim, e os muros de pedra de suas altas torres eram a única barreira que os espinhos não conseguiam penetrar. Eu deveria ter corrido para a escola, mas não o fiz. A Noite Eterna era mais perigosa que os espinhos e, além disso, eu não ia desistir da flor.
    Meu pesadelo começava a parecer mais real que a realidade. Nervosa, dei as costas para a escola e comecei a correr, deixando o gramado e desaparecendo floresta adentro.
    Isso logo vai acabar, disse a mim mesma enquanto corria por entre a vegetação, os galhos caídos de pinheiros estalando sob meus pés. Embora eu estivesse a poucas centenas de metros da porta de entrada, parecia estar muito mais longe; o nevoeiro denso fazia parecer que estava nas profundezas da floresta. Meus pais vão acorda e ver que não estou lá. Eles finalmente vão entender que não aguento mais, que não podem me forçar. Vão vir atrás de mim e, tudo bem, vão ficar furiosos por eu tê-los assustado, mas vão entender. eles sempre entende no final, não é? E ai nós vamos embora. Vamos para longe da escola Noite Eterna, e nunca mais vamos voltar. 
    Meu coração batia mais depressa. A cada passo que me afastava da escola Noite Eterna, ficava mais assustada, não menos. Antes, quando estava bolando este plano, ele tinha parecido bom. Do tipo que não pode da errado. Agora que era para valer, e eu estava sozinha na floresta, correndo por uma região que não conhecia, já não tinha tanta certeza. Talvez minha fuga fosse inútil. Quem sabe me arrastariam de volta para a escola de um jeito ou de outro.
    Trovões soaram. Meu coração acelerou. Dei as costas à Noite Eterna pela última vez e de novo olhei a flor que tremulava em seu galho. Uma única pétala foi arrancada pelo vento. Enfiando as mãos em meio aos espinhos, senti vergões de dor na pele, mas fui em frente, decidida.
    Porém, quando a ponta de meu dedo tocou a flor, de imediato ela escureceu, secando e machucando à medida que cada uma das pétalas ia ficando negras.
    Eu corria na direção leste, tentando me distanciar da Noite Eterna. O pesadelo não me abandonava. Era aquele lugar, ele estava me assombrando, deixando-me assustada e vazia. Se conseguisse  escapar dali, tudo ficaria bem. Ofegando, olhei para trás para ver quanto me distanciara.
    Então o vi. Havia um homem na floresta, meio oculto pelo nevoeiro, a uns cinquenta metros de mim, vestindo um casaco longo e escuro. No instante em que o vi, ele começou a correr atrás de mim.
    Até aquele momento, eu nunca soubera de verdade o que era o medo. Um choque me percorreu, frio como água gelada, e descobri com que velocidade eu podia de fato correr. Não grite; não adiantaria nada, pois eu entrara na floresta para que ninguém pudesse me achar. Essa tinha sido a coisa mais idiota que já fizera. E pelo visto seria a última. Eu nem tinha trazido meu celular, porque aqui não havia sinal. Não haveria socorro. Eu tinha que correr como louca.
    Poderia ouvir os passos dele, partindo galhos, esmagando folhas. Estava chegando mais perto. Deus do céu, ele era rápido. Como podia alguém correr tão depressa?
    Eles ensinaram você a se defender,pensei. Você devia saber como agir numa situação dessas! Não conseguia me lembrar. Não conseguia pensar. Galhos enganchavam nas mangas de meu casaco e prendiam-se nas mechas de cabelo que tinham escapado do meu coque. Tropecei numa pedra, e meus dentes se cravaram na língua, mas  continuei correndo. Ele estava agora ainda mais perto de mim, perto demais. Eu tinha que correr mais de pressa. Mas não conseguia.
    - Ai - arquejei quando ele me agarrou, e caímos. O chão golpeou minhas costas quando o peso dele me prensou, as pernas entrelaçadas às minhas. Sua mão cobriu minha boca, e consegui libertar um braço. Na minha antiga escola, nas aulas de autodefesa, sempre me disseram para mirar e enfiar com vontade os dedos nos olhos do sujeito. Sempre achei que faria isso se precisasse, para me salvar ou salvar outra pessoa, mas nem todo o terror que estava sentindo me forçou a fazê-lo. Curvei meus dedos, tentando criar coragem.
    Naquele instante, ele sussurrou:
    - Você viu quem estava te perseguindo?
    Por alguns segundos apenas o olhei. Ele tirou mão de minha boca para que eu pudesse responder. Seu corpo pesava sobre o meu, e o mundo parecia estar girando.
    - Você quer dizer, além de você? - consegui finalmente dizer.
    - Eu? - ele não tinha ideia do que eu estava falando. Deu uma olhada furtiva atrás de nós, como se estivesse na defensiva. - Você estava fugindo de alguém, não estava?   
    - Eu estava só correndo. Não tinha ninguém atrás de mim a não ser você.
    - Quer dizer que você pensou... - o sujeito de repente deu um pulo para trás, e então fiquei livre. - Caramba. Foi mal. Eu queria... Nossa, eu devo ter assustado você demais.
    - Você estava tentando me ajudar? - precisei dizer em voz alta para acreditar.
    Ele fez que sim com a cabeça. Seu rosto ainda estava perto do meu, perto demais, bloqueando o resto do mundo. Não parecia existir nada além de nós e da névoa ondulante.
    - Sei que devo ter deixado você apavorada, e sinto muito. Eu pensei mesmo que...
    Suas palavras não estavam ajudando em nada e eu estava ficando mais tonta, em vez de menos. Estava precisando de ar e um pouco de paz, e estava impossível com ele tão perto de mim. Apontei-lhe um dedo e disse algo que achou que jamais disse a alguém na vida, com certeza nunca para um desconhecido, e muito menos para o desconhecido mais apavorante que já havia encontrado.
    - Cala... a... boca!
    Ele calou.
    Com um suspiro, deixei a cabeça apoiar-se de novo no chão. Pressionei as palmas das mãos contra os olhos, apertando até tudo ficar vermelho. Havia um gosto acentuado de sangue em minha boca, e meu coração batia tão forte que parecia sacudir minhas costelas. Por pouco não molhei as calças, o que talvez tivesse sido a única forma de tornar ainda mais humilhante toda aquela situação. Em vez disso, respirei fundo, de novo e de novo, até sentir que estava em condição de me sentar.
    Ele continuava por ali.
    - Por que você me agarrou? - consegui perguntar.
    - Achei que nós dois tínhamos de nos esconder de quem estivesse perseguindo você, mas no fim, hã... - ele parecia envergonhado - ... não era ninguém.
    Ele baixou a cabeça, e pela primeira vez dei uma boa olhada nele. Antes disso não tinha tido lá muito tempo de analisá-lo. Quando sua primeira impressão sobre alguém é "psicótico assassino", você não se dá ao trabalho de observar os detalhes. Agora, porém, via que ele não era adulto, como eu havia suposto. Embora alto e de ombros largos, era jovem, talvez da minha idade. Tinha cabelo liso castanho-claro, que caía despenteado sobre a testa, depois de tanta agitação. O queixo era forte e anguloso,seu corpo era robusto e musculoso e ele tinha olhos de um verde-escuro incrível.
    Mas o que mais chamava a atenção nele era o que vestia sob o longo casaco escuro: botas pretas bem surradas, calças pretas de lã e um suéter vermelho-escuro com decote em V e um brasão bordado- dois corvos ladeando uma espada e prata. O brasão da Noite Eterna.
    - Você é aluno aqui na escola - disse eu.
    - Sou sim, ou pelo menos vou ser a partir de hoje - ele respondeu em voz baixa, como se não quisesse me assustar de novo. - E você?
   Fiz que sim, com a cabeça, enquanto sacudia meu cabelo desarrumando e começava a prendê-lo de novo.
    - É meu primeiro ano. Meus pais foram contratados para dar aula aqui, e eu... Não tive escolha. 
    Ele pareceu achar esquisito aquilo, porque franziu o rosto e seus olhos verdes de repente se tornaram indagadores e inseguros. Num instante, porém, ele se recuperou e estendeu-me a mão.
    - Lucas Ross.
    - Ah,oi - era estranho apresentar-me a alguém que cinco minutos antes achei que quisesse me matar. A mão dele era larga e firme, e apertou a minha com força. - Sou Bianca Oliver.
    - Seu pulso está acelerado - murmurou. Ele examinou meu rosto com atenção, e fiquei nervosa de novo, mas de um jeito bem melhor. - Tá, se você não estava fugindo de ninguém, por que corria daquele jeito? Aquilo pra mim não pareceu uma corridinha matinal.  
    Teria mentindo se pudesse pensar em alguma desculpa aceitável, mas não consegui.
    - Eu me levantei bem cedo para... Bom, para tentar fugir de casa.
    - Seus pais tratam você mal? eles batem em você?
    - Não ! Nada disso! - senti-me superofendida, mas parecia que era lógico que Lucas pensasse aquilo. Que outra razão levaria uma pessoa em seu juízo perfeito a correr pela floresta com o sol ainda baixo, como se tentasse salvar sua vida? Acabávamos de nos conhecer, de forma que ele talvez ainda me achasse "normal". Decidi não mencionar as lembranças do pesadelo, porque isso sim me passaria um atestado de louca. - Mas não quero estudar aqui. Eu gostava da cidadezinha onde nasci e, além do mais, a escola Noite Eterna é... é tão... 
    - Sinistra.
    - É.
    - Pra onde você ia? Você arranjou um emprego, ou algo assim?
    Senti que estava vermelha, e não era só pelo esforço da corrida.
    -Hã, não. Eu não estava fugindo de verdade. Só, tipo, dando um toque. Achei que assim meus pais iam acabar sacando que realmente não estou a fim de ficar aqui, e ai talvez a gente fosse embora.
    Lucas piscou os olhos e depois sorriu. Seu sorriso transformou toda a energia esquisita que estava acumulada dentro de mim, e o medo virou curiosidade, talvez até entusiasmo. 
    - Como eu com meu estilingue - disse ele.
    - Hein?
    - Quando tinha cinco anos, achei que minha mãe não estava sendo legal comigo e decidi fugir. Levei meu estilingue porque já era crescido e forte, sabe. Podia tomar conta de mim. Acho que levei também uma lanterna e um pacote de bolacha de chocolate.
    Apesar de envergonhada, não pude deixar de sorrir.
    - Acho que você se preparou melhor que eu.
    -Saí decidido da casa onde estávamos morando e percorri todo o caminho até... o fundo do quintal. Plantei-me lá e fiquei lá fora o dia todo, até que começou a chover. Não tinha pensado em levar um guarda-chuva.
    - Acontece nos melhores planos - suspirei. 
    - Pois é. Trágico. Voltei todo molhado, com o estômago doendo por causa do monte de bolachas que havia comido, e minha mãe,que é muito esperta, apesar de me deixar maluco, fingiu que não tinha acontecido nada - Lucas encolheu os ombros. - Seus pais vão fazer o mesmo. Você sabe disso, né?
    - Agora eu sei - a decepção deu um nó em minha garganta. eu sabia a verdade o tempo todo. Mas eu tinha que fazer alguma coisa, mais para lidar com minha frustração do que para dar um toque em meus pais.
    Lucas então fez uma pergunta que me surpreendeu.
    - Você quer se mandar daqui de verdade?
    - Tipo... Fugiu? Fugir mesmo?
    Lucas balançou a cabeça afirmativamente, com ar sério.
    Mas ele não podia estar falando sério. Com certeza dissera aquilo para me trazer de volta a realidade.
    - Não, não quero - admiti. - Vou voltar e me arrumar para ir à escola como uma boa menina
    - Quem falou em ser uma boa menina?
    Aquele seu sorriso estava lá de novo. A forma como disse aquilo me aqueceu por dentro e me amoleceu.
    - É que... A escola Noite Eterna... Acho que nunca vou me sentir à vontade aqui.
    - Eu não me preocuparia com isso. Pode ser uma coisa boa não se sentir à vontade aqui - ele me olhou sério e decidido, como se estivesse pensado em algum outro lugar onde eu me sentiria à vontade. Ou esse cara estava gostando de mim de verdade, ou eu imaginava coisas porque queria que gostasse. Eu era inexperiente demais para saber.
    Coloquei-me de pé, apressada, e Lucas também se levantou.
    - E então, o que você estava fazendo quando me viu? - perguntei.
    - Como disse, achei que você estivesse em apuros. Tem um pessoal barra-pesada por aqui. Nem todo mundo tem autocontrole - ele sacudiu algumas "agulhas" de pinheiro de seu suéter. - Eu não devia ter tirado conclusões precipitadas. Meus o instintos falaram mais alto. Foi mal.
    - Não, tudo bem, de verdade. Sei que você estava tentando ajudar. A orientação aos alunos só começa daqui a algumas horas. Ainda é cedo demais. Eles querem que a gente chegue lá pelas dez.
    - Eu nunca fui muito de seguir as regras.
    Isso era interessante.
    - Então, você é um madrugador, que começa o dia bem cedo?
    - De jeito nenhum. Eu ainda não fui dormir - ele tinha um sorriso incrível, e eu já havia percebido que sabia usá-lo. Não me incomodava. - Bom, minha mãe não pôde me trazer. Ela está viajando a negócio, ou algo assim. Peguei o trem noturno e resolvi vir caminhando da cidade para cá. Fazer um reconhecimento da área. Salvar damas em perigo.
    Quando me lembrei da velocidade com que Lucas correu atrás de mim, e me toquei de que fizera para salvar minha vida, a lembrança se modificou. O medo se foi, e ela agora me fazia sorrir.
    - Por que você veio para a Noite Eterna? Eu estou presa aqui por causa dos meus pais, mas acho que você podia ter ido para outro lugar. Algum lugar melhor. Tipo, qualquer outro lugar.
    Lucas parecia de fato não saber o que responder. Enquanto caminhávamos pela floresta, ele afastava os galhos para que não arranhassem meu rosto. Ninguém antes tinha aberto caminho para mim.
    - É uma longa história - disse ele.
    - Não tenho pressa alguma de volta. Além do mais, temos algumas horas para matar antes da orientação.
    Ele baixou a cabeça, mas manteve os olhos cravados em mim. Havia algo  muito charmoso nesse gesto, mas eu não sabia se seria intencional. Seus olhos eram quase da mesma cor que a hera que recobria as torres da Noite Eterna.
    - É meio que um segredo.
    - Eu sei guarda segredo. Quer dizer, você vai me ajudar a guarda segredo de tudo isto, não vai? Minha fuga, meu susto...
    - Nunca vou contar - depois de pensar um instante, ele por fim confessou. - Um antepassado meu tentou frequentar está escola quase cento e cinquenta anos atrás. Ele não se encaixou no esquema por assim dizer - Lucas riu, é senti como se o sol beijasse por entre as árvores. - Entao agora sou eu que tenho que "recuperar a honra da familia".
    - Mas não é justo. Você não deveria ter que tomar todas suas decisões com base no que ele fez ou deixou de fazer.
    - Todas, não. Eu posso escolher minhas próprias meias - eu sorri, e ele puxou a perna da calça para mostrar a meia escocesa que usava com bota preta.
    - Como é que o seu tatará-não-sei-o-quê não se encaixou no esquema?
    Lucas sacudiu a cabeça com tristeza.
    - Ele se meteu em um duelo com outro aluno logo na primeira semana de aula.
    - Um duelo? Tipo, alguém ofendeu a honra dele? - tentei me lembrar o que sabia sobre os duelos de romances e filmes. Estava evidente que a história de Lucas era bem mais interessante que a minha. - Ou foi por causa de uma garota?
    - Ele precisaria ter agido rápido para conhecer uma garota logo nos primeiros dias de aula - Lucas fez uma pausa, como se acabasse de perceber que era o primeiro dia de aula e ele já tinha me conhecido. Senti como se algo quase físico me atraísse para perto dele, mas então Lucas virou a cabeça e olhou fisicamente para as torres da Noite Eterna, que mal se viam por entre-  os ramos do pinheiros. Era como se o prédio o tivesse ofendido. - Pode ter sido qualquer coisa. Naquela época, eles duelavam por qualquer besteira. Segundo as lendas da família, foi o outro cara que começou, mas não importava. O que importava é que ele sobreviveu, mas não sem quebrar um dos vitrais do salão principal.
    - Claro! Tem uma janela que é de vidro incolor e eu não sabia por quê.
    - Agora você sabe. A Noite Eterna ficou fechada para minha família desde aquela época.
    - Até agora.
    - Até agora - ele concordou. - E não me importo. Acho que posso aprender um bocado aqui. O que não quer dizer que eu tenha que gostar de tudo deste lugar.
    - Eu tenho certeza de que não gosto de nada deste lugar - confessei. Exceto de você, acrescentou a voz em minha cabeça, que de repente havia se tornado terrivelmente ousada.
    Lucas pareceu conseguir ouvir tal voz. Era como se soubesse algo, da forma como retornou meu olhar. Com suas feições clássicas e o uniforme escolar, ele devia ser modelo do garoto cem por cento americano, mas não era. Durante a perseguição, e nos momentos seguintes, enquanto ele achava que estávamos lutando por nossas vidas, pude vislumbrar algo selvagem, que se agitava logo abaixo da superfície.
    - Gosto das gárgulas, das montanhas e do ar puro. Por enquanto é só disso que gosto - disse ele.
    - Você gosta das gárgulas?
    - Gosto quando os monstros são menores que eu.
    - Nunca tinha pensado a partir desse ângulo havíamos chegado ao gramado.O sol brilhava agora, e senti que a escola estava acordando, preparando-se para recebermos alunos e engoli-los através de seus portões. - Estou com medo.
    - Você ainda tem tempo de fugir, Bianca - ele disse de modo casual.
    - Não quero fugir. Só não quero estar cercada por tanta gente desconhecida. Nunca consigo falar ou agir normalmente com estranhos, ou ser eu mesma... Por que você está sorrindo?
    - Porque parece que comigo você consegue falar normalmente.
    Pisquei os olhos, surpresa. Lucas tinha razão. Como era possível?
    - Com você... acho que... - gaguejei. - Acho que você me deu um susto tão grande que acabou com todo o meu medo de uma só vez.
    - Olha, se deu certo...
    -É - mas eu já sentia que havia mais coisas. Eu ainda tinha pavor de estranhos, mas ele não era um estranho. Não era desde o momento em que percebi que havia tentado salvar minha vida. Era como se eu sempre o tivesse conhecido, como se, de alguma forma, há anos eu estivesse esperando por ele.- É melhor eu voltar antes que meus pais notem a minha ausência.
    - Não deixa ele te azucrinarem.
    - Eles não vão fazer isso.
    Lucas não pareceu convencido, mas assentiu ao afastar-se de mim, movendo-se de volta para as sombras enquanto eu saía para a luz.
    - Então até mais.
    Ergui a mão para acenar em despedida, mas Lucas já havia ido embora. Ele tinha desaparecido na floresta em um instante.

NOITE ETERNA                    DE CLAUDIA GRAYOnde histórias criam vida. Descubra agora