Capítulo 1 - A vida no Prazo

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Carina de Sousa, 1890

Aruanda está muda. Subiu na sua solidão e goteja sobre o mar do Índico a sua melancolia. Nunca lá estive, no mar do Índico, mas imagino-o assim: profundo e quieto como o túmulo dos meus antepassados afeitos em suas águas. O sossego estende-se até ao casarão dos senhores do Prazo, capitão-mor Bento Noronha e dona Luísa, sua esposa.

A mesa de jantar está organizada segundo as estritas orientações da dona Luísa. Esta noite recebemos a visita do jovem D. Fernando, o médico da família. Ele veio ver o sargento Pedro Lucas e convidaram-no a partilhar a ceia.

O capitão Bento e o D. Fernando demoram-se em banalidades, quando sinto um doce aroma de lírios percorrer as minhas narinas. Absorvo-o, ao mesmo tempo que noto a dona Luísa descer as escadas de granito, segurando os lírios num jarro de vidro.

- Tenho muito gosto em tê-lo connosco, D. Fernando.

- É certamente uma honra, minha senhora – D. Fernando riposta, educado, inclinando ligeiramente a cabeça na direção da anfitriã.

Reparo que a dona Luísa traja um elegante vestido azul, decorado com pérolas, e se desfez das botas e das calças de bombazina. A dona do Prazo de Aruanda é uma das mais belas mulheres que eu já vira na região. Descendente de goeses e de portugueses, ela tem uns olhos brilhantes como os de um gato na noite e a pele cor de caramelo que mais parece o aveludado algodão cultivado em Aruanda. Lado a lado com o marido, a dona Luísa chefia pessoalmente o casarão e ninguém ousa desobedecer os seus rígidos comandos.

O jantar começa então a ser servido pelo negro Josias. A seguir ficamos os três, em pé, num canto perto da porta, em prontidão. O capitão Bento e a dona Luísa não trocam muitas palavras. Mas também, nos últimos dias, a minha senhora parece um tanto irritada. Mais do que o habitual. Ontem ao dar-me uma ordem, tratou-me por "bandazia". Nunca me tinha chamado assim. Chama-me sempre pelo meu nome. Se bem que o meu nome nem sempre fora esse. Batizaram-me com o nome Carina os padres jesuítas a mando dos meus senhorios. Afinal, não podia continuar a usar o meu nome bantu porque estes achavam, entre outras razões, uma aberração.

Também não me nego a aceitar o nome "bandazia", afinal de contas, tenho dezanove anos e sou criada da casa, trabalhando na cozinha. Nem sempre o fui. Na verdade, e é aí onde reside a ironia da minha vida, eu nasci potencial herdeira do trono do reino que agora é Aruanda, na altura pertencente ao meu pai, respeitável chefe tribal.

O meu pai não teve como resistir aos avanços dos prazos, e na sua tentativa foi derrotado em combate. Aruanda tinha então uma nova dona. A dona nos acolheu, a mim e a minha mãe, em nome da lealdade prestada pela minha família.

- Porque é que falta pão? – Indaga a dona Luísa depois de uma breve inspeção à mesa.

Num gesto involuntário deixo as minhas mãos pousarem por um instante sobre o avental branco que cobre a minha saia, e parto rapidamente em direção à cozinha para providenciar o que está em falta no jantar da dona. Somos mais de trinta pessoas responsáveis por manter impecável o casarão e a cozinha da dona, mas ainda assim, as vezes há falhas de detalhe.

Regresso à sala carregando na mão um pequeno cesto contendo fatias de pão branco cortadas com perfeição. Enquanto pouso o cesto na mesa, noto a presença de João, um dos novos sipaios. Ele entra cautelosamente, sob o olhar pasmo do meu senhorio.

- Tendes ordens para nunca interromper as refeições, João.

- Capitão, com a devida permissão – introduz o sipaio, quase silenciosamente – está lá fora o Lorde Sean. Diz ter urgência em lhe falar.

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