Capítulo 4 - Último adeus ao Pedro Lucas

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D. Fernando Costa, 1890

Aqui reside a vida, cuja chave é o seu avesso: a morte. De impiedosa sedução e perpétua sombra, por todos os cantos. O sol magro e pálido arrasta e esconde atrás das nuvens pesadas o seu clarão, em taciturnos segredos. O segredo negro, o segredo de Pedro Lucas, meu amigo Puca que partiu sendo uma mistura de dois mundos. O capim verde que contorna o leito de Puca, é um capim rasteiro e melancólico, com salpicos de chuva silenciosa, que desce em finas retas. Tão retas como as lágrimas da dona Luísa Noronha. É um acumular paulatino, mas constante de tristezas.

A dona Luísa segura um lenço, tentando controlar o desespero, à medida que os coveiros fazem descer o caixão de Pedro Lucas. Ela engole um gemido endurecido no rosto. Cessam as lágrimas e a chuva grosseira. O padre interrompe as orações deixando passar a carruagem por onde descem algumas pessoas.

O Lorde Sean e sua filha Isabel Sabrina vem em marcha silenciosa, acompanhados de seus criados negros que carregam os guarda-chuvas. Intimidadas pela imponente presença, as pessoas afastam-se ligeiramente, e os observam, caladas.

- Que fazeis aqui? – a pergunta vem da dona Luísa e é dirigida ao Lorde Sean - Deixe-nos chorar a nossa dor em paz, por favor.

A mim também dói muito a partida de Pedro Lucas, e rezo para que um pé de guerra não se desboque agora. Não neste lugar, isso traria azares.

- O Senhor não é cá bem-vindo! – insiste o capitão Bento. Sinto-lhe o corpo em fúria – vocês causaram a morte do meu filho, senhor governador! E por causa disso – informa agora ríspido - pode crer que nunca mais poderei prestar-lhe serviços, e nunca terá paz, ainda que vocês sejam os novos donos de Aruanda. Não lhe darei paz!

A Isabel Sabrina, jovem linda e loira, filha do Lorde, está pejada de lágrimas. Não sei qual das coisas a machuca mais: se o facto de o seu amado ter sido morto, ou o facto de saber que este nunca a amou.

O governador olha a volta e repica o solo sagrado com suas botas, cruzando as mãos, colocando-as em frente ao corpo. O criado segura a sombrinha sob a sua cabeça.

- Viemos apenas mostrar os nossos pêsames – a seguir olha demoradamente para a dona Luísa – o seu filho magoou muito a minha filha e não honrou os seus compromissos, dona, mas isso são águas passadas, ele se foi – faz uma pausa e perante o olhar aturdido do casal, ele prossegue: - Eu já vos disse que não fomos nós, repito, não fomos nós! Como poderíamos? Havia infiltrados naquela noite. Pessoas que se aproveitaram da situação e causaram este infortúnio.

A versão do governador tem sido esta desde então, a de que havia um atirador escondido entre as pessoas ou entre algum arbusto. O incêndio, a fuga dos achicunda, nada foi por acaso, advoga ele.

A Dona Luísa fita-o, descrente. Sei, no entanto, que ela guarda um sentido remorso, por ter sido ela quem cimentou a pseudo-ideia de que a mamã Lina e Carina eram feiticeiras, forjando evidências para que fosse possível as levar para longe. Tudo para que o Pedro Lucas não cometesse a loucura de fugir com a Carina, comprometida com um chicunda, deixando para trás o compromisso de casamento com Isabel. Na verdade, tudo isto intriga-me, pois se dizia que a mamã Lina era alguém da confiança da dona Luísa, tida como amiga. E depois, porque tentar evitar a relação entre Pedro Lucas e Carina, usando aquele tipo de artifícios? É verdade que a Carina é negra, mas em Aruanda e por todo o vale houve, desde o princípio, misturas entre nós e as mulheres locais, e agora andamos assim misturados. Até porque a Dona Luísa tem sangue negro nas veias. Bom, talvez já não quisesse mais misturas na sua família. Ou então, será o facto de Carina se reduzir a uma simples criada? Na melhor das hipóteses, hão-de ser razões económicas que pesaram para este desfecho, por forma a salvaguardar o poder nas mãos da mesma família.

Ao pensar na Carina tolda-me uma angústia enorme. Que karma terá caído sobre ela. Preciso encontrá-la, não sei onde, nem como. Mas preciso de me certificar de que ela está bem. Não consegui salvar o meu amigo, portanto esta é a única coisa que posso fazer e que irá tranquilizar o seu espírito, perdido por estas terras.

O discurso do governador interrompe o curso do meu pensamento e afirma a pretensão de construir uma missão missionária no casarão. Uma missão para educar o povo nos preceitos de Deus.

- Não me importa o que o senhor vai fazer ou deixar de fazer com Aruanda, pode mandar construir quantas missões quiser – informa dona Luísa, imperativa – ou colocar um milhão de camelos a passarem pelo deserto, que toda poeira que levantarem será nada comparada a dor que sinto, meu pobre Puca! – ela tem agora a voz enrouquecida e frágil, tenta fungar pelo nariz.

Nesse momento algumas pessoas cercam-na para a acalmarem, enquanto o Capitão Bento faz-se chegar ao Lorde Sean.

–Agora vá, senhor governador. Vá-se embora. Se vocês não foram os responsáveis pela morte do nosso Puca, nos mostrem quem foi, mas agora vá.

O Lorde Sean e a filha, finalmente tomam caminho, deixando o lugar.

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