Capítulo 6 - Perdida no paraíso

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Carina de Sousa, 1889

O livro que escolhi desta vez, é complicado. Que escolhi não... como se eu pudesse escolher qualquer coisa, nesta vida. É o livro que surripiei. Estava no meio das várias coisas que o Capitão Bento decidiu jogar no lixo.

Os livros nesta casa têm palavras tão difíceis, longas, mas mesmo assim, eu gosto de tentar decifrar as mensagens. Falam de coisas maravilhosas, contam histórias mirabolantes que fervilham na minha mente, eu já não consigo passar muito tempo sem dar uma espreitadela em qualquer coisa que tenha palavras para se ler. Isto, claro, quando não estou com a minha mãe, com o Foquiço, ou com meus irmãos, dançado ao som vibrante dos batuques. O vício é tão grande que as vezes quando estou a fazer a limpeza no casarão, principalmente na biblioteca, basta que não esteja ninguém a olhar ou por perto, para eu deixar de fazer limpeza e me colocar a folhear furtivamente os livros dos meus senhorios. Quanta traquinice há nisto?

Hoje é um bom dia para fazer estas minhas traquinices. Terminei o trabalho de costume e estou sentada sob o tronco caído de uma árvore, localizado no jardim de uma das extensas áreas do casarão. Aqui ninguém me encontrará. Nem a família, nem os guardas que circulam por aqui. Para mim, este é o paraíso que o comparo ao descrito na bíblia.

Nunca vi flores tão vermelhas como as que aqui estão, em cheiro tão intenso e doce. As atas à volta cortam o azedo da kakana a saber-me na boca, no meio a leitura. À minha frente tenho a visão de um pequeno estreito lago, brilhante manto de mercúrio, a ouvir alguns canários a cantar.

O repentino chapinhar na grama acelera-me o peito.

É o sargento Pedro Lucas. Ele aproxima-se ajeitando o blusão azul de dois botões todo aberto, deixando a mostra o tórax. Envergonhada baixo o olhar e ele continua a aproximar-se, marcando passo nas pesadas botas.

- Senhor Pedro Lucas – balbucio em pé, pousando a tigela sob o tronco. Ele chega-se perto, olha-me sem que eu perceba a sua expressão. Será que está chateado e vai me mandar castigar? Ou está a rir-se por um motivo que desconheço?

- Afinal podes ler? Onde é que roubaste isto? – arranca-me o livro das mãos – Eça de Queirós? – pergunta sem tirar os olhos de mim. De seguida devolve-me o livro, esperando uma explicação. Rezo para que não me aconteça o pior. Mas quero acreditar que de um raspanete não vai passar. Eu lembro de criança, quando a família Noronha me acolheu depois da morte do meu pai, deixavam-me brincar com o menino Puca, e era simpático comigo. Depois que foi estudar em Goa, voltou imponente como o pai, não me atrevo a falar com ele senão para receber ordens, tão pouco ouso testar-lhe a paciência.

- Desculpe-me, senhor Pedro Lucas, é que me sinto bem a ler – tento explicar-lhe. Ler dá-me uma sensação de equilíbrio, é como vestir uma roupa nova e embarcar num novo destino. Mas isto eu não lhe digo. Estendo-lhe o livro, apavorada com a ideia do que me pode acontecer.

- Pensei que o senhor capitão, vosso pai, tivesse o deitado fora. Perdoe-me, senhor, por favor.

Ele não recebe o livro. Apenas observa-me com o mesmo ar curioso e avança o olhar sobre os meus cabelos crespos alongados, desgrenhados e de pontas soltas.

- Pensei que a tua cabeça servisse apenas para segurar este matagal – pega as pontas do meu cabelo como quem analisa uma planta rara. Abana a cabeça e de seguida senta-se no tronco.

- Vá mas é fazer algo útil, menina! Agora estou com fome, prepara-me um lanchinho. Que comida é esta? – refere-se à comida na tigela pousada no tronco.

- É verdura senhor, chama-se kakana.

Para o meu susto, vejo-o pegar a tigela e servir-se da mesma colher que eu tinha estado a usar para provar a verdura. Acena com ar agradado, mas logo de seguida faz um ar de rejeição e devolve a tigela ao tronco.

- Vai, faz-me uma sandes bem gorda. Não ouvistes? – Insiste, por eu ter ficado parada, atónita. Agarro as bordas da longa saia branca e afasto-me depressa. Dou meia volta a pensar em devolver-lhe o livro, ou talvez não, mas o senhor Pedro Lucas acena a mão como se estivesse a espantar uma galinha.

- Andando menina, andando!

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