Vermelho e gotejante

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                  Felps se arrastou como pôde na direção da sombra de um arbusto largo, a dor o faria gritar se não lhe sufocassem a boca as suas próprias mãos molhadas de lágrimas.

              –Você acha que eu quero isso? Acha que eu gosto de fazer essas coisas? Eu não gosto, garoto. Caçar não é pra mim. – A voz de Marion, tão perto agora que nem precisava mais falar aos gritos. Ele dava passos que tornavam suas palavras cada vez mais claras, mas Felps, ocupado demais em puxar a flecha de dentro da própria carne, não se deu conta de quanto tempo se passara até que o outro se abaixasse ali, bem ao seu lado – Eu odeio, na verdade. Odeio mesmo. Odeio o cheiro, odeio as feras, odeio ter que ouvir o maldito mato se partindo... – Marion afagou-lhe a cabeça –Eu não nasci para caçar, mesmo assim te peguei outra vez, não peguei? Dessa parte eu gosto, eu acho. Eu sempre pego você...

            Felps grunhiu de dor, a haste de madeira deslizando para fora do joelho, libertando o tecido do vestido emplastrado de sangue.

            –Com certeza você acha que eu sou um homem horrível, – O sorriso de Marion o encontrou. –Acha que estou fazendo isso tudo porque eu quero –Não eram perguntas. Felps encarou a face branca como cera, respingada do sangue de Gong ou de Siri ou da moça estranha.

 Felps encarou a face branca como cera, respingada do sangue de Gong ou de Siri ou da moça estranha

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           Marion não tinha nada de bonito se alguém pudesse olhá-lo bem. Um desequilibrado, não importasse o quanto se escondesse por trás da organização de suas roupas. Felps queria poder esmurrá-lo. Afundar naquele rosto de cera o nariz perfeitamente simétrico. Gostaria de fazê-lo engolir cada um dos dentes cuidadosamente escovados e absurdamente alinhados e brancos.

              Sentia ferver dentro de si uma raiva maior do que a dor ao ver a mão do outro se fechar em torno do seu punho mais uma vez. Quantas vezes ele o pegaria? Quantas vezes ele o submeteria a sua vontade como... Não. Não mais se deixaria arrastar por ele, ao menos não passivamente como antes. Não seria levado outra vez para seu calabouço, nem permitiria que seu corpo servisse como recreação para aquele maníaco.

            Então quase como se um imã atraísse a ponta de aço da flecha, Felps sentiu a mão erguida, irresistivelmente rápida quando espetou a haste com toda a força fazendo vazar um olho cor de chá. O grito de Marion soou como o de um cão ferido e era bom ver o outro caindo para trás, levando a haste consigo, espetada como uma bandeira na cavidade inundada de vermelho.

            –Socorro!– Pediu Felps quase ao mesmo tempo que o Dom guinchante. Mas diferente de Marion, se pôs de pé para correr outra vez. –Socorro!Por favor, alguém!

Puxando a perna se afastou o quanto pode ouvindo o outro se apoiar nos galhos baixos, gemendo sobre as folhas.

        –Não tem que ser assim, – Disse a voz de Marion – Você poderia ir pra casa, para Ivela, eu te daria sedas. Não é o que você quer? Seu filho de uma puta...

          –Socorro!

            Felps atravessado de dor, fugia com o coração galopando a trote largo. Não ousava olhar para trás, sabia que estava sendo seguido bem de perto, mas não queria vê-lo com a flecha espetada no sulco negro que sangrava. A raiva fazia Marion parecer ainda mais assustador. Patas cada vez mais próximas, a terra pulsando de impacto.

             –Por favor! – As lágrimas aqueceram seu rosto enquanto as garras de Marion se fechavam ao redor de um dos seus braços mais uma vez.

         –Eu sempre pego você. Sempre.... – Sussurrou o Dom passando o outro braço ao redor de seu pescoço, num aperto quase mecânico.

          Felps fechou os olhos com força, o coração quase explodindo dentro do peito, os sons das batidas martelando em suas orelhas como tapas quando o captor o ergueu alguns centímetros do chão, apertando suas costas contra o próprio peito e, enquanto esperneava, Felps notou num delírio os sapatos largos voando para longe, cada um numa direção diferente. Nada daquilo importava, é claro. Não precisaria mais deles de qualquer forma.

              Se tivesse piedade, Marion o levaria de volta, o surraria com certeza, e talvez com um pouco de sorte, o matasse, ao invés de forçá-lo a servir como divertimento outra vez. Sim, com um pouco de sorte, Felps morreria ali mesmo, pensou enquanto sentia a língua se rebelar contra os próprios lábios, e o ar, ah o o fôlego, este se transformava numa lembrança distante na memória.

          Gostaria de poder gritar enquanto o outro o arrastava para alguma direção,ouvia-o resfolegando perto demais de seu ouvido esquerdo, rindo talvez, enquanto as árvores rodavam e as folhas se entrelaçavam umas nas outras, num borrão verde que piscava e sumia.

            Só as batidas ritmadas de seu coração gritavam, as batidas e a dor no pescoço e no peito. Como patas esbofeteando o solo, estalando mais alto como ossos de costela perfurando um pulmão encolhido como uma fruta seca.

         Então houve um urro. Um som animalesco, que só poderia ter saído de uma garganta ferina, um barulho que fez com que Marion gemesse de susto,depois interrompesse milagrosamente seu aperto de morte.

             Felps, de joelhos sobre a terra, tossiu tragando o vento com ânsia, ouvindo repetir-se o barulho salvador enquanto o ar queimava a garganta como se estivesse em brasa. Todos os outros sons tinham se calado ao redor deles diante do barulho que retumbou outra vez, tão vibrante e repentino que mais parecia um milagre.

           "Tomara que seja uma pantera híbrida" pensou engasgando com raiva. "Tomara que seja mesmo. Uma fera grande o bastante e com fome o suficiente para devorar a nós dois...".

             E pela terceira vez o urro estremeceu tudo, mais próximo do que nunca,acompanhado do som das patas de um animal enorme, um cavalo que ao saltar das sombras obrigou Felps a se abaixar para proteger a cabeça.

            Marion caiu também, quase ao seu lado, uma risada horrenda desenhada em seu rosto vermelho. Não havia mais flecha, ao menos isso. Só uma cavidade negra no centro de um amontoado de carne que inchava rápido.

         –Ictar!– Ele disse e gargalhou loucamente. – Maldito farejador!

            Felps também olhou para diante. Onde o enorme cavalo malhado pateava o chão. Acima, além da cabeça bufante do animal, o enorme Caçador castanho, coberto de peles negras, tinha as sobrancelhas inclinadas sobre os olhos cor de terra. Parecia abatido, e estava magro como alguém que tivesse passado muitos dias ao relento, mas sua barba trazia um brilho novo de uma mecha vermelho-vivo que tinha sido trançada junto aos seus próprios fios emaranhados.

           Felps a reconheceu imediatamente.

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