Borboleta

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               Passou os braços ao redor do pescoço de Ictar e apertou-o com toda a força que ainda lhe restara, respirando a paz que tinha cheiro de suor e grama, rezando à Sícy e também ao deus dos puros, para que aquele momento fosse mesmo real.

            –Encontrei os cabelos no rio e...Graças a deus, graças a deus está viva –Ictar o apertou com tanta força que Felps tossiu outra vez. –Graças a deus, eu pensei... O que ele fez com você? – Ictar disse aquilo enquanto passava para Felps a sua própria manta de panteras,mas como não houvesse resposta, segurou a cabeça de Felps para forçá-lo a encarar seus olhos e parecia quase aborrecido quando insistiu. – Minha Borboleta, – Disse – O que ele fez?

               E Felps quis contar-lhe tudo, desde o momento em que Marion o ameaçara com ferros em brasa, até o instante em que o fizera cair por uma janela, ataberna, o beco...Tantas coisas para dizer, e elas o feriam tanto que não encontrou palavras para responder a pergunta. Como contar que tinha tido medo e que as correntes lhe feriram os pés? A fome? Como falar que Marion o atravessara e que fizera-o sangrar rosnando em seus ouvidos? Como dizer sobre o frio? A flecha em seu joelho? Como explicar toda a dor?

              Enormes lágrimas inundaram seus olhos, e teve que morder o lábio para tentar contê-las, mas eram muitas e queimavam.

           –Minha Borboleta... – Ictar, os dois joelhos em terra, deu-lhe seu beijo de calma e então se voltou para o irmão, a pergunta se transformando num grito enquanto o outro se erguia devagar das folhas úmidas e já não sorria mais, ainda sim, sustentava um olhar sombrio no único globo que lhe restara quando começou:

 – Ictar, os dois joelhos em terra, deu-lhe seu beijo de calma e então se voltou para o irmão, a pergunta se transformando num grito enquanto o outro se erguia devagar das folhas úmidas e já não sorria mais, ainda sim, sustentava um olhar sombrio ...

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             –O que eu fiz?– Felps ouviu-o rir e estremeceu entre os braços de Ictar– E o que você fez, Ictar? Hein? O que você fez comigo? Ah, não faça essa cara...Essa cara de...Você sabe muito bem o que eu fiz com esse moleque porque foi o mesmo que você fez! Se lembra? – Ele apontou para o irmão um dedo acusador. –Seu filho de uma cadela vadia...Seu bastardo de uma puta! Sabe o que eu fiz! Sabe exatamente o que eu fiz! –Marion deu um passo adiante e Felps sentiu o aperto de Ictar se intensificar gradualmente enquanto a voz indignada do irmão se misturava ao sons descompassados do próprio coração do Caçador –Eu o amei com a minha vida, Ictar! Eu teria deixado Portão Branco se me pedisse! Eu teria deixado, Ictar e você sabe. Mas o que você fez foi... Foi me humilhar e me desprezar como se eu fosse....Como se... Você preferiu o mendigo que eu encontrei na floresta! Olha só o que você fez! Quando tudo o que eu fiz foi amá-lo com a minha vida...

           –Felps não tem culpa, Marion, essas coisas são... Somos irmãos, homem!

             O Caçador disse aquelas palavras com cuidado, mas ainda assim, algo nelas fez com que Marion sacudisse os ombros de um modo estranho, como se uma onda de asco o varresse.

           –Não sou! – Disse ele assim que se refez – Sabe muito bem que não sou seu irmão! E sua "Borboleta" não passa de um mendigo sujo! Um mendigo que fodi num beco, porque estava bêbado demais para procurar uma puta melhor.

              Houve um instante de silêncio depois daquilo. Um silêncio tão agourento e cortante que nenhum animal ou homem, nenhuma fera, inseto ou folha,ousou quebrar com um pio, rosnado ou farfalhar.

                Então Ictar beijou Felps no alto da cabeça antes de ordenar:

               –Não olhe isso. 

                E durante todo o tempo em que Marion gritou sob os sons ocos dos punhos do irmão, Felps apenas esperou obedientemente. A cabeça coberta com a manta, o rosto apoiado nos joelhos que abraçava.

              E os gritos de Marion faziam lembrar o de algum animal agonizando e morrendo. E eram assustadores, e Felps desejou muito que eles terminassem logo, porque mesmo com as mãos sobre os ouvidos, aindaos sentia dentro de si, agarrando o seu coração como garras, e portanto tempo Ictar o esmurrou, que as vezes os sons paravam e então tornavam a acontecer, e Felps achou que nessas horas ele tentava retomar o fôlego, antes de retornar ao que estava fazendo. Até que em dado momento, Marion finalmente se calou e Ictar voltou para o seu lado, tirando a túnica de sobre o seu rosto. E vendo-o Felps percebeu que ele tinha as faces rosadas de esforço e os olhos sombrios.

              –Não olhe. – Repetiu, e novamente Felps o obedeceu, dessa vez fechando os olhos com força quando o outro o ergueu para fazê-lo montar. Ictar tomou seu lugar logo atrás, no lombo do animal e o fez trotar depressa para longe dali.

              –Pronto–Disse o Caçador.

             –Ictar...?

             –Eu não o matei, se está preocupada.

             –Eu...

             –Quer saber o quanto daquilo é verdade?

            Felps fez que sim.

              –Eu também gostaria de saber, Borboleta. – Disse Ictar num tom sombrio.– Mas um abuso é sempre um abuso e não há nada que justifique esta violência, o que ele fez a você foi...

            –Mas se ele estava sofrendo então...?

              –Nenhuma dor justifica o que ele fez com você. Nada justifica. Entende isso?

             Felps fez que sim, mas achou que tinha sentido pena de Marion por um momento. Então a garganta latejou onde ele o apertara antes e uma parte de seu coração desejou que Ictar o tivesse matado de verdade.

              Talvez uma pantera híbrida aparecesse na madrugada atraída pelo cheiro da carne esmagada ou quem sabe surgisse pela trilha um darf realmente interessado em algo fácil de mastigar...

               –Tem fome ou dor? Deseja parar para dormir...? –Felps estendeu uma mão para fora da manta, dedos doloridos de frio a fagando as duas tranças castanhas na barba de Ictar, a mecha de seus próprios cabelos entrelaçada numa delas. Que os deuses abençoassem Siri e suas ideias.–Peça o que desejar, Borboleta. – Completou Ictar, uma das mãos nas rédeas, a outra apertando o rosto do rapaz contra o peito. – Qualquer coisa.

            –Me perdoe. – Pediu Felps, porque aquela era a única coisa que realmente queria. – Me desculpe por ter...Eu fui tão burro, eu acreditei em tudo o que ele...

              Mas o outro suspirou e sua voz retumbava com o grave de um trovão ao longe, mesmo assim não assustava. Era como o fim de uma grande tempestade.

            –Nunca foi sua culpa, Borboleta. – Ele disse e Felps sentiu a pressão de outro beijo tocar o alto de sua cabeça – Nada disso foi sua culpa. Homens loucos são como avalanches de neve, sabe? É difícil fugir deles porque esmagam tudo, mas a montanha permanece, não é? Ela fica ali, como uma lagarta no casulo até que venha o sol e leve embora o frio. Então a montanha aparece, mais bonita do que antes, porque a neve se transformou em água para os seus rios e as suas flores estão prontas como asas. – Ictar apertou-o mais. –Eu jamais devia tê-la deixado, Borboleta.

Borboleta (COMPLETO)Onde histórias criam vida. Descubra agora