O passado passou ali

2 0 0
                                    

O passado passou ali, pelo perfume daqueles portões de ferro. Um cheiro de limo, cheiro molhado. Taiobas crescem, eu sei, porque as conheço. Uma gota brilhante de orvalho dorme na folha. O passado arrancado da casa demolida respira ali, na alta jabuticabeira. Altíssima, a maior de todas, a que jamais vi.

Troncos grandes, fortes, mais altos do que eu, fincados e podados, enfileirados em um dos cantos do quintal enorme, perto da jabuticabeira. Cortados pela metade. Aparados. Troncos fortes que se encontram uns com os outros, se dão as mãos. Caules xifópagos parecem. Troncos engraçados. Viris.

E podados no jardim vazio, cercado, que abunda de verde molhado. Brotos verdes e pequeninos teimam nos caules. Um dia, a fila dos, hoje, troncos teriam sido... arbustos? Tenros arbustos que se planta enfileirados nos jardins e pomares para separar lugares.

O muro é pra lá de belo, é sincero. Número 11, está escrito para quem chega perto. Há muito mais; há pinheiros frondosos, bonitos. Mas o que chama é o retorcido dos galhos e tapete baixo de mato molhado que exala. A tarde finda. O limo teima também em querer comer o muro de pedra e ferro que circunda o quarteirão na Praça do Suspiro, mas o embeleza no mesmo tanto que envelhece suas feições.

Escrevo esta fotografia afastada e, na calçada, passam outros passados de senhoras e senhores. Passam as crianças e seus futuros – como eu com o meu, que data de outra época. Hoje volto ao lugar, a olhar a falta da casa rosada e a bela lembrança que o cheiro no portão emana.

A casa foi ao chão há tantos anos, eu era ainda uma criança. Sobrou-lhe um arremedo mínimo no canto, no fundo, pra lá das árvores e do mato, quase como se não existisse, não fosse a cor. É a casa da família de um fotógrafo. Dos bons. Os donos, de bom gosto, conservaram nas paredes da ínfima moradia o rosa que não é moderno nem antigo. É rosa apenas, daquele tipo invariável que se tinha antigamente. A porta com jeito de fazenda é verde folha, assim como o umbral da janela. Verde e rosa, verde e rosa.

Bananeiras, avisto! Bananeiras altas, claro. O cheiro indescritível retorna. O encanto da cena muda. O tempo parado entre as grades atrai não apenas a mim, mas quem passa leve por perto. Tudo aquilo ali exala forte perfume: é verde, é velho, é ferro, é bosta, é chuva. Não há como descrever a beleza do mato.

Tem cheiro de bosta, de bicho até, eu diria, enquanto os carros passam com suas rodas e motores sobre os paralelepípedos da rua. Generoso quarteirão deixa-se avistar inteiro pelas grades. O muro, o jardim, o ferro puxam também os olhos de um casal que passa e sonha e afirma: o local é ótimo!

Voltarei em outro fim de tarde, em fim de chuva, para fotografar a casa do fotógrafo e esta cena muda que pulsa serenamente. Hoje só trouxe a caneta!

Se Essa Rua Fosse MinhaOnde histórias criam vida. Descubra agora