Enchente: cai a segunda ficha

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Fui poupada do horror. Só pude vir escrever aqui quando compreendi meu papel na tragédia. (A frase emprega mais verdade do que eu ouso carregar). Quando cheguei à cidade, foi junto com o sol. Uns estão mortos, outros não. Umas casas caíram, outras não. Umas ruas ruíram, outras não. Umas pessoas sofreram muito, outras não. Uns estavam na cidade, outros não. Uns estavam nos bairros atingidos, outros não. Uns estavam nos morros, outros não. Uns estavam nos quartos que ruíram, outros não. Uns se apavoraram. Outros, também.

Minha voz não representa o momento, achava. Carreguei uma coisa como se fosse culpa por não ter passado pelo o que passou a população e ter sido poupada de estar na cidade. De fora, não se enxerga nada mesmo; nada como tudo realmente é. Uma coisa permanentemente pequena, calada e pesada, ficou martelando em mim. Para completar, a tendinite amordaçava fortemente o meu braço restrito a um trabalho que não era o de ajudar a limpar. Andei por aí com minha interrogação em silêncio: por que eu não? Entrei no episódio como o político de Brasília que tudo sabe, mas nada, de fato, vê. Não sabe. Não viveu. E comecei a ver que não apenas eu.

Eu não vi corpos se mexendo sobre os escombros, como uma amiga começou a me contar no dia imediatamente seguinte e eu tive que interromper seu relato pelo MSN porque não estava pronta para ouvir. Era ainda o dia em que o mundo caiu e faltavam muitas cartas importantes no meu baralho de informação. Eu ficaria fora de controle se soubesse de todas as gravidades antes de falar com os meus. Mesmo assim, duas ou três frases da Cristiana me acompanharam no início da tensão como um sinal real da temeridade dos acontecimentos.

Desde então, o calor assola e ainda não tinha chovido. Agora, quando choveu brando há três dias, olhei diferente para as letras de Feliz Natal do enfeite ainda mal pendurado no portão de casa. E pensei coisas que pudesse escrever aqui. Vendo as letras balançando, em pleno fevereiro, me lembrei do evento de fim de ano.

Volto aos preparativos de Natal para entender melhor o cair das chuvas. Era 22 de dezembro de 2010, eu finalizava a arrumação na varanda-garagem transformada em lounge, a fim de receber os amigos para o happy hour de fim de ano. A decoração de natal serviria também para nossa festa de família e eu pendurei coisas aqui, ali e lá durante todo o dia. Meu marido veio com o gelo e a cerveja. Ajudei, terminamos, e eu, finalmente, fui tomar banho. Eram quatro horas da tarde. Começara a ventar, parece.

Saindo do banheiro, vi que meu marido não entrara em casa. Ventava muito forte e ele estava atrás da enorme tampa de isopor que voara. Quando corri para ajudar com a tampa, ele já me apontava o sofá encharcado na outra ponta da varanda. "Onde vão sentar agora os convidados da festa?", pensei meio chorosa e alucinadamente. A chuva de vento castigou a varanda aberta e a mobília; arrastamos as mesas para o centro e, mesmo sem querer, desarrumei a cena. Já chovia muito.

O happy hour marcado para as seis, a chuva chegando após eu pendurar o meu último enfeite, não adiantava mais: vamos entrar. Tínhamos estacionado os carros na frente da casa, na parte baixa da rua, para dar à festa lugar na garagem. Subi para o segundo andar a fim de, sei lá, não deu para saber, voltei.

As vozes se alteravam lá embaixo, meu nome era chamado, a chuva continuava e a rua... enchera, porque tem um riachinho logo ali. Os carros tinham água pelo meio e eu, de banho tomado, caminhei com a água acima dos joelhos para libertá-los. Levei-os à parte alta da rua e voltei. O céu dava voltas e não dizia claro se a chuva iria parar. Enfim... Retorna para casa o churrasqueiro-garçom que acabara de chegar, guardada a bebida, cancelada a festa.

Salto para 12 de janeiro. O mundo caiu verdadeiramente aqui. Perto do que aconteceu, eu não fui atingida. Trabalhei muito, de 8h às 9h e de 9h às 8h, mas não ajudei meus pais a limpar a casa de lama e o jardim; mal olhei para os móveis que viraram lixo largados lá fora. Vi uma moça atravessando a rua e falando ao telefone naturalmente: "Minha família morreu todinha". Sei que é inacreditável, mas era comum ouvir trechos de relatos fortes com ares de normalidade. Quando a água baixou, uma senhora encontrou os corpos da irmã e sua filha abraçadas na porta da cozinha.

Vi que não tinha sofrido nada, que não poderia nunca saber o que aqui se passara ao encontrar com um amigo, uma semana depois. Ele tinha o horror estampado na face. Se eu tivesse presenciado o que vi depois, nem sei por quanto tempo poderia durar o sangue e lama de minhas crônicas. Não foi apenas muito difícil escrever. Eu perdi também a chance do texto inexoravelmente forte, com palavras encharcadas de áspera emoção. Ou seria, talvez, simplesmente como foi: impossível descrever.

Nova Friburgo, 12 de fevereiro de 2011.

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