Você não consegue organizar bem o pensamento – talvez por não ser preciso – quando sai do seu país, voa algumas horas em um total de mais de doze de translado e entra na rotina de uma família e de uma casa como se fosse a sua. Tudo é igual: o amor e a alegria das crianças, o céu, o sol, montanhas, muito verde. No pomar da casa, frutas "exóticas" e velhas conhecidas. No jardim do vizinho, uma criança chama o pai em espanhol: Papa! Papa! No mais, tudo igual, tudo diferente: hablo de Santiago do Chile, onde vim visitar a filha e as netas do meu marido.
Um pomar pequeno, um passeio breve, frutas "diferentes"! Pés de fruta. Você compra as danadinhas na feira ou no mercado com uma tarjeta: ameixas chilenas. Não faz ideia que elas dão em árvore, não conhece o tamanho da planta, não sabe que aquela coisa ruça sobre a pele roxa da ameixa nem de longe é resto de agrotóxico. É que elas vêm assim mesmo do pé.
Um pé de pêssego, um pessegueiro. Não de pêssegos verdes ou sem gosto, mas daqueles amarelos avermelhados e carnudos. O pé pende, carregado; os frutos sobressaem à árvore. Peras em penca que a dona de casa alternativa – embora moderna e internacional – transforma em compotas com maestria. Peras, às vezes, batem ponto nos mercados; mas dão em árvores, como não nos parece.
Há muitas outras: romãs! Na minha casa da infância, tinha um pé de romã que, quando dava, era uma alegria. No pomar, elas abundam avermelhando a casca com equilíbrio. Enfeitam muito os pés, de colorido assim. Há figos no fundo. Figueiras encantam. Limão comum e siciliano. Abacateiro. Pequenos abacates já prometem nos galhos em tamanho ainda semelhante aos figos – abacates chilenos não parecem crescer muito mais do que isso. Os damascos já se foram, não conheci o fruto nem o vi. Só conheço o damasco seco mesmo.
Tudo isso belo, tudo isso lindo, tudo isso abunda em pequeno espaço de terra. Todas as árvores dão juntas, parecendo parir os frutos em sinfonia. Sinto-me com sorte por ter vindo em março; poderia não ser assim em outra época do ano.
Findo o parágrafo para falar da amendoeira. O fruto é familiar, tal qual o nome da árvore. Não a coisa em si. Encantei-me. Encontram-se amêndoas nas bancas dos mercados, ao lado das cascas duras de nozes e avelãs. Desconhecemos sua nobre roupagem. O fruto que conhecemos quase nu se forma na casca dura envolta em nobre concha de veludo. O contraste de texturas espanta e acolhe. O olho que vê hoje o fruto tem que aprender a imaginar o que foi ontem, porque as verdades não nos chegam mais inteiras.
2010
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Se Essa Rua Fosse Minha
De TodoA impressão que se tem ao ler as crônicas de Marcia Savino é a de estar pessoalmente em contato com a autora. A habilidade de dispor criativamente em palavras a sua figura e o seu rebuliço interno (detalhe que a torna incrivelmente encantadora), cat...