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Só podia ser um trote! O email que sua secretária lhe encaminhara não tinha como ser mais estapafúrdio. Vinha assinado pelo prefeito de Mitteltal, seu antigo colega do tempo do ginásio. Contava que um enorme dragão vermelho surgira nas colinas a leste da cidade e, para findar os ataques às fazendas, exigia conversar com um conciliador, alguém que conhecesse as dores da alma. Já tinham tentado convencer o presbítero a encontrar-se com a besta, mas este, horrorizado, enclausurou-se na igreja onde definhava em preces diuturnas. Apelava à antiga amizade da meninice, para que ele viesse negociar com o dragão e salvasse a cidade de sua fúria.

Ele baixou a tela do notebook, sem saber se ria ou ignorava a mensagem. Mitteltal tinha lá suas loucuras endêmicas. Cercada pela Floresta Negra, ainda convivia com relatos de bruxas e lobisomens. Quando criança, ele até tinha medo de ir brincar na floresta. Já agora era um adulto, um respeitado psicanalista. Dragões, duendes, todos os seres da noite humana eram fruto de devaneios neuróticos... E não havia tempo para pensar naquilo; logo chegaria o paciente da próxima sessão.

Teria se esquecido da inacreditável solicitação, não fosse um telefonema do prefeito no dia seguinte, pouco depois do meio-dia:

— Klaus, por que eu mentiria para você? É uma terrível verdade! Um dragão apareceu na cidade e ameaça queimar tudo. Alguns jovens conseguiram fotografá-lo próximo a sua caverna e postaram selfies nas redes sociais. Você pode ver por si só e constatar o que digo. Estamos desesperados e precisamos urgentemente de você — dizia o homem agitado.

Ele irritou-se e desligou a chamada. Que brincadeira boba! Um email jocoso era uma coisa; uma chamada encenada era demais! O próprio prefeito divulgando fake news, ora essa... Não existem dragões!

Serviu-se duma xícara de café e ligou o notebook. A questão ficou mariposando ao redor, tirando-lhe a concentração. O telefone toca novamente, mas era a paciente da tarde, cancelando a consulta.

— Sra. Ausbrecher, é a quinta vez que a senhora cancela a consulta em cima da hora! Isso me dá prejuízo; há outros que poderiam vir em seu lugar, se tivesse avisado dias antes. Terei de cobrar pela hora que ficarei ocioso. — ele alertou-a antes de se despedir, embora ela já soubesse das regras, pois Klaus as esmiuçava, esperando de seus clientes muito zelo com os horários e os vultosos honorários.

Ante o tempo vago e a saudade da cidade despertada pelos apelos do prefeito, viu-se a abrir a página eletrônica de Mitteltal. A xícara foi ao chão enquanto ele lia a notícia em letras negritadas. O dragão estava lá, no plano de trás das fotos, ora mostrando os dentes, ora a língua, enquanto desmiolados rapazes e moças faziam biquinho em primeiro plano. Todos os jornais locais na internet estampavam o mesmo!

 Todos os jornais locais na internet estampavam o mesmo!

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Talvez ainda fosse um trote, um muito bem engendrado. Ou não... Estava disposto a verificar. Pois viu a oportunidade de sair ganhando algo, fosse como o negociador da cidade, fosse como o cético que desmascarou a grande farsa. Ligou de volta ao prefeito e acertaram de lá ir em dois dias.

O Dragão e o AnalistaOnde histórias criam vida. Descubra agora