— Poderias me contar quem venceu a guerra?
— Guerra!? Qual delas?
— São tantas as que vocês iniciam que eu deveria ser mais preciso... Falo da grande guerra que transcorria quando acordei no século passado.
Klaus compreendeu que o dragão falava da Primeira Guerra Mundial. Eventualmente mantinha-se atualizado devido às conversas esporádicas com os párocos que convocava, a cada século.
— A França, o Reino Unido e seus aliados a venceram... Mas essa foi apenas a primeira das Guerras Mundiais. Houve outra, anos depois, muito maior, quando o Senhor já dormia. Perdemos ambas... É curioso que me pergunte pois sua presença na guerra poderia ter ajudado imensamente nossas tropas. Houve combates nesta região. Ninguém lhe pediu para dar uma forcinha?
— Por que eu me engajaria, se não sou alemão? Apenas vivo aqui e há mais tempo do que qualquer tribo germânica. Essa guerra não me dizia respeito. Já participei de outras guerras no passado, quando era jovem e inconsequente. E percebi que a maioria delas era motivada por ganância... Atualmente, só participo se valer a pena. Justamente por isso estava ocupado na Rússia; era mascote do Exército Vermelho.
Um sismo de indignação varreu o semblante do analista.
— O que você está dizendo? Que lutou por aqueles bolcheviques safados?
— Eles defendiam causas nobres e gostávamos da mesma cor. Os brancos fugiam ao me ver; eu era a "Ameaça Vermelha", haha! Foi tão divertido! Sigmund aprovou, disse-me que sempre devemos buscar o que nos dá prazer!
— Devo alertar que você foi enganado, meu amigo. Esses comunistas é que são os inimigos, seus e de todos nós. São eles que vão entrar na sua caverna à noite e roubar seu tesouro!
— Você acha?
O dragão pareceu acanhar-se. Subitamente, era como se seu próprio tamanho tivesse encolhido.
— Tenho certeza. Seja lá o que lhe falaram, eles não gostam de quem tem dinheiro. Seu tesouro conquistado com tanto suor seria confiscado para ser distribuído a vagabundos que não trabalham.
— Na verdade, eu não conquistei; como disse, foram presentes ganhados ao longo dos séculos...
O analista não o ouviu, pois prosseguiu protestando.
— Essa ideologia é uma praga que ainda hoje nos perturba. Infectaram as escolas, os partidos, as universidades, até as associações laborais. Querem controlar, dividir, taxar tudo! Me diga, o Senhor: qual o problema em ser rico? Só é rico quem mereceu ser.
Klaus foi crescendo mais e mais vocitroante e sobrecenho; sentia-se um leão divino que avançava destemidamente, seguro de que uma mão invisível o apoiava e guiava.
— Já imaginou que pode ter sido por culpa sua que eles foram bem sucedidos e tomaram o poder da Rússia? Talvez se você não tivesse se juntado a eles, o Exército Branco teria vencido e o glorioso Império Russo duraria até hoje. Quem sabe até a Prússia! Eles mataram as crianças Romanov!
— Desculpa...
— Se gostou tantos desses vermelhinhos, por que não fez sua toca em Cuba ou... ou na Venezuela? Morar mal ninguém quer, né?
A bem da verdade, o dragão não entendeu tais alusões que se referenciavam a eventos ocorridos durante sua hibernação. Ainda assim retrucou:
— Moraria de bom grado noutro local, mas não consigo me afastar desse tesouro. É para isso que conversamos.
A observação arrefeceu um pouco o analista. Estava a ponto de incitar o dragão a dividir tudo o que tinha e fazer voto de pobreza, se quisesse ser coerente com o lado que escolhera. Todavia, ele mesmo já não conseguia se imaginar sem algumas daquelas peças. E para tê-las, teria de merecê-las.
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O Dragão e o Analista
FantasyApós hibernar por um século, um enorme dragão vermelho acorda na cidade de Mitteltal, no Sul da Alemanha, trazendo pânico ao local. Para interromper os ataques às fazendas, ele exige que a cidade lhe envie um interlocutor que entenda as dores e os m...