IX

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— Poderias me contar quem venceu a guerra?

— Guerra!? Qual delas?

— São tantas as que vocês iniciam que eu deveria ser mais preciso... Falo da grande guerra que transcorria quando acordei no século passado.

Klaus compreendeu que o dragão falava da Primeira Guerra Mundial. Eventualmente mantinha-se atualizado devido às conversas esporádicas com os párocos que convocava, a cada século.

— A França, o Reino Unido e seus aliados a venceram... Mas essa foi apenas a primeira das Guerras Mundiais. Houve outra, anos depois, muito maior, quando o Senhor já dormia. Perdemos ambas... É curioso que me pergunte pois sua presença na guerra poderia ter ajudado imensamente nossas tropas. Houve combates nesta região. Ninguém lhe pediu para dar uma forcinha?

— Por que eu me engajaria, se não sou alemão? Apenas vivo aqui e há mais tempo do que qualquer tribo germânica. Essa guerra não me dizia respeito. Já participei de outras guerras no passado, quando era jovem e inconsequente. E percebi que a maioria delas era motivada por ganância... Atualmente, só participo se valer a pena. Justamente por isso estava ocupado na Rússia; era mascote do Exército Vermelho.

Um sismo de indignação varreu o semblante do analista.

— O que você está dizendo? Que lutou por aqueles bolcheviques safados?

— Eles defendiam causas nobres e gostávamos da mesma cor. Os brancos fugiam ao me ver; eu era a "Ameaça Vermelha", haha! Foi tão divertido! Sigmund aprovou, disse-me que sempre devemos buscar o que nos dá prazer!

— Devo alertar que você foi enganado, meu amigo. Esses comunistas é que são os inimigos, seus e de todos nós. São eles que vão entrar na sua caverna à noite e roubar seu tesouro!

— Você acha?

O dragão pareceu acanhar-se. Subitamente, era como se seu próprio tamanho tivesse encolhido.

— Tenho certeza. Seja lá o que lhe falaram, eles não gostam de quem tem dinheiro. Seu tesouro conquistado com tanto suor seria confiscado para ser distribuído a vagabundos que não trabalham.

— Na verdade, eu não conquistei; como disse, foram presentes ganhados ao longo dos séculos...

O analista não o ouviu, pois prosseguiu protestando.

— Essa ideologia é uma praga que ainda hoje nos perturba. Infectaram as escolas, os partidos, as universidades, até as associações laborais. Querem controlar, dividir, taxar tudo! Me diga, o Senhor: qual o problema em ser rico? Só é rico quem mereceu ser.

Klaus foi crescendo mais e mais vocitroante e sobrecenho; sentia-se um leão divino que avançava destemidamente, seguro de que uma mão invisível o apoiava e guiava.

— Já imaginou que pode ter sido por culpa sua que eles foram bem sucedidos e tomaram o poder da Rússia? Talvez se você não tivesse se juntado a eles, o Exército Branco teria vencido e o glorioso Império Russo duraria até hoje. Quem sabe até a Prússia! Eles mataram as crianças Romanov!

— Desculpa...

— Se gostou tantos desses vermelhinhos, por que não fez sua toca em Cuba ou... ou na Venezuela? Morar mal ninguém quer, né?

A bem da verdade, o dragão não entendeu tais alusões que se referenciavam a eventos ocorridos durante sua hibernação. Ainda assim retrucou:

— Moraria de bom grado noutro local, mas não consigo me afastar desse tesouro. É para isso que conversamos.

A observação arrefeceu um pouco o analista. Estava a ponto de incitar o dragão a dividir tudo o que tinha e fazer voto de pobreza, se quisesse ser coerente com o lado que escolhera. Todavia, ele mesmo já não conseguia se imaginar sem algumas daquelas peças. E para tê-las, teria de merecê-las.

O Dragão e o AnalistaOnde histórias criam vida. Descubra agora