Capítulo II - O início do desconhecido

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Acordei com uma excelente noticia, a temperatura está em dez graus. Muitos não gostam do frio, reclamam que tudo é mais difícil de fazer. Acredito que as pessoas não gostam por ser um clima nostálgico, que nos faz refletir um pouco, e as pessoas odeiam isso, porque na reflexão são confrontadas com suas sombras , aspirações, desejos e sonhos, e isso é um grande incomodo para elas, afinal, preferem viver de acordo com a mediocridade que o mundo oferece, ao invés de descobrir a beleza que traz no seu interior. Mas quem sou eu para acusá-las? Vivo dentro de uma gaiola, me encaixo perfeitamente no seguinte trecho de os Irmãos Karamazov de Dostoievski:
Somos assim. Sonhamos o voo, mas tememos as alturas. Para voar é preciso amar o vazio. Porque o voo só acontece se houver o vazio. O vazio é o espaço da liberdade, a ausência de certezas. Os homens querem voar, mas temem o vazio. Não podem viver sem certezas. Por isso trocam o voo por gaiolas. As gaiolas são o lugar onde as certezas moram.
Já são 09h10min e nada de Laura aparecer, isso me deixa extremamente irritado. Pontualidade tinha que ser uma Lei. Sempre chego 15 min antes de meus compromissos. Sim, sou ansioso. Mas também chamo isso de respeito. 09h20min soa o meu telefone
–– Oi!
–– Tobias, Laura está aqui.
–– Mande subir, por gentileza.
Terminei o meu cappuccino e fui abrir a porta, minha sala é a ultima, portanto posso ver os meu pacientes caminhando por um corredor de 10 metros até chegar a minha sala. Sempre gostei disso, confesso que imagino muitas coisas nesse meio tempo.
Quando Laura entrou no meu campo de visão, aquele sentimento da noite anterior invadiu o meu peito. Não, não foi amor à primeira vista, ao contrário, um sentimento de desconforto me apoderou como um pressentimento que esta terapia ia me levar para um lugar desconhecido. Laura devia ter 1,74, cabelos longos, pretos e lisos, aparentava ter uns 22 anos, ou seja, dois anos mais nova do que eu. Com um casaco vermelho e cachecol branco, caminhava lentamente, com um sorriso no rosto, como se estivesse indo para o circo.
Nesse meio tempo fiquei imaginando: Valha meu Deus! Mais um caso de briga com namorado. Sempre achava isso um tédio. Depois que você atende casos de depressão, esquizofrenia, transtorno bipolar etc. Casos de adolescentes que brigaram com o namorado e acham que o mundo acabou é entediante.
Quando Laura se aproximou estendi a mão:
–– Olá!
Laura pegou na minha mão e me cumprimentou com um abraço
–– Olá! Prazer, Laura.
Fiquei sem graça, mas mostrei naturalidade e retribui o abraço.
–– Olá! Prazer, Tobias.
Ela entrou e foi direto para o divã e deitou-se. Eu nunca uso o divã, tenho por ser o símbolo mais clássico da psicologia. Evidentemente, que não é somente um símbolo, mas minhas técnicas não reclamam um divã.
–– Eu sempre quis deitar em um divã!
–– Que bom, aproveite, porque não faremos nossa sessão ai. –– Falei com um tom de gozação.
–– Oh, acho que isso depende de mim, não é? –– Replicou fitando em meus olhos.
–– Deixo adivinhar, estudante de psicologia?
–– Meu Deus! Você é bom! Laura não segura e solta uma gargalhada.
Foi o inicio mais bizarro de uma terapia que já vivenciei. Em dois anos não se vê muita coisa, mas à medida que ia conversando e observando as atitudes de Laura, eu confirmava a minha sensação de desconforto: Isso não parece bom!
Após esse inicio nada convencional, pedi para que se sentasse na poltrona indicada para que pudéssemos iniciar verdadeiramente a terapia.
– Então Laura, em que posso te ajudar?
–– Não sei!
–– Mas você veio aqui por algum motivo.
–– Sim, sou estudante de psicologia e acho que devemos fazer terapia.
–– Ok, Qual semestre você está?
–– 2° Semestre
Normalmente, um estudante do 2º semestre de psicologia é o mais alienado possível, acredita que Freud é Deus, e, que podem definir as pessoas pelo seu comportamento. Laura tinha o típico comportamento de uma jovem acadêmica, mas à medida que a conversa ia se desenvolvendo, percebi que ela não se enquadrava nesse perfil.
–– Ok Laura, me conte um pouco sobre você.
–– Me chamo Laura, tenho 23 anos, filha única de pais separados, estudante de psicologia, sonhadora, católica, amo os animais, músicas, filmes, livros, ah, aos poucos vou te contando. E você Tobias, me conte sobre sua história.
–– Acho que você sabe que não funciona assim. –– Encarei-a seriamente
–– Sim, estou só brincando! –– Laura não perdia a postura, parecia sempre em paz.
As pessoas sempre trazem uma queixa ou várias, mas Laura diz não ter queixas, o que eu duvido, acredito ser questão de tempo para ela revelar o verdadeiro motivo de estar aqui. Próximo de encerrar, ainda faço três perguntas.
–– Por que escolheu psicologia?
–– hum...
–– Não sabe?
–– Talvez porque eu goste de conhecer outros mundos.
Evidentemente que isso me soou familiar, e resolvi não perguntar nada mais. Terminei de explicar os procedimentos de como funcionava a sessão e me despedi estendendo a mão.
–– Até semana que vem
–– Até semana que vem. Abraçando-me novamente, de maneira mais forte do que antes.
Com alguns minutos antes da próxima sessão, fiquei mais tranquilo. Claro que era cedo para qualquer “diagnóstico”, mas parecia uma filha carente, que estava à procura de uma figura paterna para conversar sobre os seus medos. Pensei seriamente em não pegar o caso, não só pelo desconforto, mas também por achar que ia ser uma perda de tempo, tanto para mim quanto para ela.

***
Ao término da primeira sessão com Laura, passei o resto do dia ansioso, o que começou a me irritar, porque pela primeira vez tive a sensação de não estar no controle da sessão. Mas graças a Deus, terça-feira é o dia da minha “terapia” com o Pe. Marcos. Sim, minha terapia é feita com um Padre, sempre me senti mais à vontade no confessionário do que no divã. Padre Marcos sempre acompanhou minha família. É um erudito de sessenta anos que sempre tem uma boa história para contar.
Toda terça-feira (que é o dia de sua folga) passamos à noite juntos, após me atender na Igreja, sempre saímos para jantar e beber um bom vinho, então conversamos de tudo. Em nosso primeiro encontro pós o caso Laura, não a mencioná-la em nossas conversas, estava muito inseguro a respeito do caso, e como ainda não tinha descartado a possibilidade de atendê-la, preferi não colocá-la como um fato em minha vida.
Acredito que fiz a escolha certa, pois rapidamente me vi envolto no meu comodismo. Claro que estava um pouco ansioso com a segunda sessão de Laura, mas nada que me atrapalhasse.
Enfim, chega o momento da segunda sessão. Após o mesmo rito matinal cheguei ao consultório às 08h50min. E de cara encontro Laura na recepção.
–– Bom Dia, Tobias! –– Abraçando-me.
–– Bom Dia, Laura. –– Fiquei vermelho de vergonha.
As pessoas não sabiam se era minha namorada ou minha irmã, porque evidentemente não é comum essa proximidade entre terapeuta e paciente. Pedi para que aguardasse um minuto. Peguei um cappuccino e fui para a minha sala, e depois de dez minutos pedi para que subisse.
Pensei em não esperá-la no corredor, mas minhas pernas não concordaram e correram para a porta. Laura entrou e foi direto para a poltrona. Um avanço! pensei comigo.
–– Bom dia Laura, como está hoje?
–– Estou bem! Andei refletindo muito nesse final de semana.
Respirei aliviado: Finalmente! Vamos começar a terapia.
–– Que bom! Sobre o quê?
–– Sobre como vamos fazer a nossa terapia.  –– Como assim? Perguntei espantado, enquanto Laura abraçava a almofada.
–– Ah, já que estarei aqui toda semana, não quero ficar somente falando da minha vida.
–– Estou com medo da sua resposta, mas preciso perguntar. O que você tem em mente?
–– Penso que você também possa contar sobre sua vida, seus medos, sonhos etc.
Então não aguentei e cai na gargalhada, e Laura também não se segurou e começamos a rir.
–– Ok Laura, foi um ótimo quebra-gelo. Mas vamos voltar para o foco.
–– Estou falando sério.  –– Fitou-me com seus olhos grandes e castanhos.
Então senti que precisava ser mais firme e esclarecer a situação, porque estava começando a me achar um imbecil.
–– Laura, não me entenda mal. Mas me parece que você quer me testar ou simplesmente acha que a terapia é só mais uma conversa entre amigos.
–– Se fosse somente uma conversa entre amigos, surtiria muito mais efeito do que ficar fingindo ouvir o paciente e encaixá-lo em um modelo de reparação comportamental ou buscar no inconsciente uma peça que está quebrada e substitui-la. Como se o ser humano fosse uma maquina imprevisível que não deseja o infinito. –– Laura falou seriamente, mas com uma docilidade incrível.
As palavras de Laura foram um soco na boca do estômago. Evidentemente que não professava literalmente de suas palavras, mas como não dizer que eram fragmentos da verdade? De qualquer maneira, fiquei feliz, pois pela primeira vez Laura falou seriamente na sessão. E sabia que era uma grande oportunidade.
–– Por que você pensa assim? –– Perguntei empolgado.
–– Não sei.  –– Laura Esquiva-se.
Comecei a me sentir mais à vontade e mais no controle. Mas Laura não era uma simples paciente. Sabia exatamente o que sentia, era perspicaz e não se deixava convencer por um argumento clichê de análise.
–– Qual é o problema de quebrarmos o protocolo da terapia? –– Voltou a insistir.
–– A questão não é quebrar o protocolo.
Sim, essa era a questão.
–– A questão é que você não quer fazer terapia, mas uma experiência. E isso você terá nos longos anos de estágios, para brincar e ver que isso definitivamente não é uma brincadeira.
–– Tudo bem, não estou brincando com a terapia, mas quero te mostrar que podemos fazer algo diferente aqui.
–– Você é insistente né?
–– Só nas coisas que eu acredito. –– Laura Sorri.
Então continuamos discutindo o assunto, mas de maneira mais descontraída até o término da sessão. Afinal, não queria forçá-la. Fiquei satisfeito achando que Laura estava progredindo, contudo a verdade era que eu estava sendo moldado.

Dois Corações No Divã (Em Construção)Onde histórias criam vida. Descubra agora