Capítulo IV - Sob a Tutela de Deus

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Na semana que antecedia a quarta sessão, tudo estava perfeito. Acreditava que finalmente tinha o caso em minhas mãos. Tudo caminhou bem até sábado à noite, quando sou surpreendido com um SMS de Laura: “Oi, estou ligando para marcamos a nossa próxima sessão na cafeteria paradiso. Mudar o ambiente faz bem para a terapia, até logo. Bjos =)”.  Fiquei em choque! Por alguns minutos, não conseguia pensar. Evidentemente que não respondi o SMS. Liguei para o único que poderia me auxiliar: Pe. Marcos. Ele estava dormindo e pediu para que o procurasse amanhã na parte da tarde na casa paroquial. Nem preciso dizer que dormir naquela noite não era para os fracos, era para os fortes.
Domingo à tarde encontrei o Pe Marcos.
–– Sua benção Pe.!
–– Deus te abençoe meu filho.
–– O que está acontecendo? Parecia assustado ao telefone.
–– Estou com um problema!
–– Você? Já sei. Sua rotina mudou.  –– O Pe. não segurou a gargalhada.
Pe. Marcos era a pessoa mais próxima de Deus que eu conhecia. Me viu crescer, celebrou o meu batismo, minha primeira comunhão e concelebrou minha Crisma, e ainda era o meu diretor espiritual, ou seja, tinha total confiança e liberdade com ele.
Comecei a falar de Laura e como tudo começou. Ele não ficou nada impressionado. Parecia a confissão de um adolescente que tinha problemas com a mãe. Foi Então que quando mostrei o SMS, e confiante que ele tomasse uma atitude severa e me proibisse de vê-la. Ele exclamou:
–– Qual é o problema de você de ir à cafeteria? Com uma cara que como se quisesse dizer: “você chama isso de problema”?
–– Está brincando comigo? –– Falei de maneira jocosa.
–– Meu filho, se um fiel quer se confessar comigo no alto da roda gigante, o que eu posso fazer?
–– Pe. o senhor sabe que isso é diferente.
–– Não sei, conte-me.
–– Ah, tudo bem! Vou chegar à cafeteria e dizer “Laura, que legal você por aqui, bem no horário da terapia. Ah, porque não façamos nossa sessão aqui mesmo? E que tal irmos ao cinema mais tarde?” PADRE ELA É MINHA PACIENTE!
–– Está envolvido afetuosamente por ela? –– Perguntou com toda calma do mundo.
–– Não, isso é um absurdo!
–– E ela?
–– Também não.
–– Olha Tob, quando recém fui ordenado padre, precisamente na minha primeira semana, onde todos estavam em festa, inclusive nós, a paróquia recebeu a ligação no final da tarde, quase noitezinha, de uma prostituta, que pediu para se confessar, mas não queria ir à Igreja, pois não se achava digna, e pediu para que enviasse um padre até o prostibulo. No primeiro momento todos acharam que era trote, mas o Vigário Geral deixou o caso em minhas mãos. Disse que se não quisesse ir não teria problema algum. Ele não queria me testar, mas sabia que nenhum outro padre iria ao prostibulo por diversos motivos. Mas eu era um padre jovem e talvez pudesse ter um coração mais corajoso.
Eu fiquei desesperado, não sabia o que fazer, tinha medo do que ia encontrar lá, e afinal, se fosse um trote? Uma oportunidade para me ridicularizar?  E se realmente não fosse uma confissão, e os fiéis levassem o meu nome ao bispo? Não sabia o que fazer, mas resolvi ouvir o meu coração, pois a razão é a morada do comodismo. E fui até o prostibulo.
–– E o que aconteceu? –– perguntei espantando.
–– Quando cheguei lá, não era o melhor dos ambientes, mas não estava ali para separar o joio do trigo, e sim, para atender uma ovelha que pedia misericórdia. Era uma jovem que estava muito mal, ardendo em febre, não me lembro o que ela tinha, mas estava segurando um terço e rogando perdão. Quando a absolvi de seus pecados, ela faleceu. Depois fiquei sabendo que ela fora vendida pela sua mãe, quando tinha apenas oito anos de idade. Desde então, não me preocupo muito quais são as paredes que me cercam, mas quem está a minha frente.
Padre Marcos parecia ter a resposta para tudo.
–– Obrigado Padre. Acho que sei o que fazer. E fui embora.
No dia da sessão, levantei mais cedo e pensei em desistir. Isso é loucura! Posso perder minha licença de psicólogo! Mas a história do padre Marcos não me deixava um segundo sequer. O problema do comodismo é que independente da escolha que fizesse, eu ia me culpar. Mas quer saber? Hoje o meu cappuccino vai ser na cafeteria Paradiso.
Cheguei uma hora antes na cafeteria, porque se eu surtasse dava tempo de ir embora. O tempo passou e Laura chegou com uma cara que não estava acreditando no que estava vendo. Nem eu estava.
–– Uau! O senhor protocolos atendeu o convite da paciente maluquinha, quebrando suas regras? –– Falou debochando da minha cara.
Puxei a cadeira para ela, o que a deixou confusa. Afinal, para mim existem cavalheiros e damas. Mas nesse mundo maluco de hoje, acho que isso se tornou obsoleto, mas não para mim.
–– Ok, Laura! O que você pretende com isso?
–– Ops, voltamos com os protocolos!
–– O que eu pretendo? Isso continua sendo a terapia, não pense nada demais.
–– Acredite, não pensei.  Fiquei meio sem graça e fugi do assunto pedindo um cappuccino. Laura me acompanhou
–– Então, algum problema com a minha poltrona? 
–– Não, mas queria ver como é o meu terapeuta fora do seu “reino”. Afinal, tenho que saber com quem estou me tratando. –– Esbocei um sorriso.
Laura tinha uma pureza em sua fala sem igual. Ela nunca demonstrava segundas intenções. Era meiga, educada, inteligente, características que não coincidiam com suas ideias malucas, mas cheias de paixão.
Após um começo de conversa nervoso, fui relaxando, sem imaginar o que Laura poderia aprontar. E nossa conversa começou a desenrolar.
–– O que você faz para se divertir Tob? –– Não aguentei e cai na gargalhada.
–– Já estão te passando algumas perguntas clichês de terapias. –– Comentei rindo.
–– (risos) É sério!  Eu adoro fazer piqueniques, cinema, andar de bicicleta etc. e você?
–– Gosto de ficar em casa comendo e assistindo filme
–– Puxa vida, como você é aventureiro! Ela adorava brincar comigo
–– Também gosto de andar de bicicleta, mas já inventaram o carro sabia? Falei todo imponente.
–– Jura? Também inventaram computadores, celulares e, recentemente a terapia. Sabia?
Laura sempre me deixava sem palavras com suas verdades. O que era difícil o meu Ego suportar. Mas o que dizer? Contra fatos não há argumentos.
–– Ok, você venceu! Sorri olhando o relógio e percebendo que o meu tempo estava no limite.
–– Nos vemos semana que vem?
–– Não!
–– Por quê?
–– Nos vemos nesta semana ainda. Tomando o seu cappuccino e escondendo sua expressão.
–– O que você quer dizer? –– Perguntei espantado.
–– Domingo à tarde, um passeio no parque com piquenique, que eu levo é claro.
–– Olha Laura... Ela me interrompeu.  –– Está combinado! Para de ser chato! Sorriu me deu um abraço e foi embora, me deixando sem poder de reação.
Fui para o consultório completamente ansioso, ao mesmo tempo que sentia lapsos de prazer, que logo eram cobertos pelo sentimento de que isso não estava certo.
Quando cheguei ao consultório, estava totalmente inquieto, não acreditava no que estava acontecendo. Atender meus pacientes exigiu uma concentração que até então nunca precisara. Aos poucos fui me tranquilizando, afinal, hoje é dia de conversar com o Pe. Marcos. Mas antes, eu atendi Giovana, que havia remarcado sua sessão para hoje. Estava fazendo progressos em relação à depressão, mas o seu tumor ainda era uma ameaça iminente. Sua sessão me fez esquecer do buraco que eu estava me enfiando. Foi uma sessão pesada, pois Giovana decidiu falar sobre a morte. Um assunto que não se vê jovens de 20 anos comentando por ai, mas no seu caso, era impossível não pensar nessa realidade.  O final de nossa conversa foi paradoxal.
–– Eu sei que posso morrer a qualquer momento, mas não estou com medo!
–– Isso é bom! –– Falei com entusiasmo
–– Não, Tobias! Não estou falando nesse sentido.
–– Que sentido?
–– Não estou com medo de viver! Todos temem a morte, ou você acredita naquela historinha de Sócrates tranquilo diante da morte?
–– Claro que não.
–– Exatamente! Descobri que o meu tumor pode me retirar muito cedo deste mundo, mas eu não sou a primeira nem a última. E sabe de uma coisa? Estou fazendo coisas que nunca faria se estivesse com boa saúde. E não é porque estou aproveitando os anos que me restam. Mas por algum motivo maluco, eu descobri um sentido na minha vida, mesmo com um problema terminal.
Somente Laura tinha mostrado tanta sabedoria em minhas sessões. Fiquei muito feliz pelo seu desenvolvimento. Depois da sessão fui direto a casa do Padre.
Quando cheguei a Igreja, ele estava iniciando a missa, me sentei na primeira fileira, pois adorava suas homilias. Nesse dia, comentou sobre o Juízo final, e encerrou com a seguinte frase: “O céu começa em nós”. O que me deixou pensativo o resto da missa, afinal, essa frase está moda?
Após a benção final fiquei esperando o Padre se despedir dos fiéis. Como era uma noite muito fria, ele me pediu para ficarmos em sua casa, ao invés de sair para beber algo. Estava tão cansado que aceitei na hora. Pedimos uma pizza e abrimos uma boa garrafa de vinho. Finalmente ele me questiona:
–– E o café com sua paciente, você foi?
–– Fui! –– Falei meio inseguro.
––  Imagino o quão isso foi doloroso para você, mas estou feliz que tenha ido.
O padre só queria o meu bem, mas ele parecia não entender as proporções que isso poderia tomar, ou simplesmente não ligava para isso.
–– Mas padre, o senhor não entende. Agora ela quer ir ao parque comigo neste domingo. –– Falei com um tom de medo, enquanto o padre me faz novamente uma pergunta que para mim, era estupida.  –– Qual é o problema?
–– Pelo amor de Deus Padre! O senhor sabe exatamente qual é o problema, isso não é uma brincadeira, é a minha vida. 
Ele sabia que o meu problema não era ir ao parque, por isso insistia na pergunta. E então sem nunca perder a calma, ele me cala:
–– Sim, meu filho. Eu sou padre há 30 anos, não precisa me dizer de limites e renúncias, pois a única renúncia que você fez até agora, é de viver. Eu nem quero saber do seu código de ética. Você não está deixando de ir ao parque para cumprir uma suposta “ética”. Pare de tentar enganar a si mesmo.
Eu sabia que ele estava certo, mas encerrei o assunto. Não estava preparado para encarar minhas sombras. E fui para casa pensando como resolver essa situação da melhor maneira possível, uma vez que me recusar a tratar Laura já estava longe de ser uma opção.

Dois Corações No Divã (Em Construção)Onde histórias criam vida. Descubra agora