Posso me lembrar da primeira vez que usei shorts como se fosse ontem. Todas as minhas calças estavam sujas e havia apenas um short para usar. Nem sabia o porquê de aquilo estar dentro do meu guarda roupa, pois sequer me lembrava de tê-lo comprado. "Mãe! Onde estão minhas calças?!" ela disse que não fazia ideia e que já estávamos atrasadas. Iríamos para uma festa na piscina e o máximo que eu colocaria dentro da água seriam meus mindinhos dos pés. "Vista qualquer coisa, querida! Temos que ir rápido!" respondi que "qualquer coisa" não era exatamente uma opção. Coloquei os shorts e desci as escadas guardando todos os cinco livros que havia separado para levar, junto com os fones de ouvido e um saquinho de chá de camomila. "Eu realmente não posso ficar?" fiz a cara de por favor, mas não funcionou de novo. Ela disse algo sobre relacionamentos e minha falta deles e que eu precisava sair de casa e arejar a mente. "Os livros arejam a minha mente e não relacionamentos, mãe" ela disse que eu iria e ponto. Ninguém ousava contestá-la quando ela usava o ponto.
Quando chegamos na festa logo procurei uma sombra. Aparentemente, numa festa na piscina as pessoas não gostam de sombra. Poderia jurar que era a primeira coisa que procurava assim que punha os meus pés para fora de casa.
Longe das minhas expectativas terminei dois livros que havia lido até a metade e comecei outro. É, acho que as pessoas não se sentem confortáveis com alguém que tem vitiligo cozinhando (modéstia à parte, minha torta de morango era espetacular. Se América provasse ficaria louca), pois quando fui à cozinha me oferecer para ajudar, nossa anfitriã não fez uma cara tão agradável. "Não precisa. Não queremos mãos sujas por aqui". Eu fiz o que pude para não chorar.
Minha mãe escutou e não gostou do comentário. Nunca mais pisamos os pés na casa dela novamente.
Não foi muito diferente do que aconteceu na escola. Assim que soquei o olho do Mateus uma professora pediu para que meus pais me controlassem, pois estava virando um monstrinho, tanto fisicamente quanto na personalidade. Ela deu-nos um sermão sobre agressividade e como aquilo poderia ser influência dos pais. Para completar, disse que eu era doce e linda e naquele momento não me reconhecia mais. Mudei de escola no ano seguinte.
"Você gostaria de ser outra pessoa nessa nova escola?" meu psicólogo perguntou e eu disse que claro que sim. Então ele me disse para que eu me orgulhasse do meu vitiligo. "Como? Está louco? Todos vão rir de mim e fazer chacota. Vão dizer que eu me acho muito e que eu não sou tudo isso. Fora que as pessoas são más e cruéis e assim que chegar à escola vou ser..."
"Camila, pare!" ele me interrompeu "Não percebe o que está fazendo? Está rejeitando a si mesma com base no pensamento de outras pessoas e o detalhe é que você sequer sabe o que elas pensam. Quer que todos te aceitem da forma que é quando, na verdade, nem você mesma se aceita. Entende como isso é grave?" respondi que não entendia. "Você deve algo a eles? Eles pagam suas contas ou amam você? Conhecem o seu coração ou sabem as suas motivações?" fiquei calada. Sabia que as respostas para todas aquelas perguntas era um grandioso "não", no entanto, meu medo do que aquilo poderia significar era maior. "Quero que faça uma coisa: todos os dias, antes de dormir, irá agradecer por algo em você. Seja algo que fez, algo que pensou ou até mesmo algo que não fez" perguntei o que faria se não houvesse nada para agradecer " Agradeça simplesmente por ser você. Lembre-se, ninguém pode ser você tão perfeitamente quanto você mesma."
Naquele dia fui para casa de ônibus. Coloquei os meus fones de ouvido e a playlist no aleatório. Qual foi o meu erro descobri apenas quando os primeiros acordes de Yellow começaram e me lembraram de todos os meus dias até aqui. Um dia em especial, quando Anagrama ainda estava aqui e ofereceu-me um fone e disse que aquela música que tocaria era minha música. Ele também disse que achava que aquela era minha música porque amarelo era minha cor favorita (acredito que a pele negra tem algo inexplicável com amarelo). Naquele dia estávamos fazendo um trabalho de artes.
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C A M O M I L A | Série Singular
Historia CortaCapa por: @NKFloro. Dizer que seus "eus" eram opostos seria desleixo. Uma mera metáfora, para a realidade que vivia. Seu lado negro sentia vergonha e seu lado albino poderia sentir as bochechas ficarem quase vermelho-bombeiro. Uma anomalia tão incom...