ㅤthirty-one︱florets

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O vazio fazia com que o som de passos ressoando pelos corredores fosse ainda mais alto, e era impressionante como as luzes fracas transformavam aquilo num perfeito cenário de filme de suspense, daqueles que te fazem contrair, tenso, cada músculo do corpo; rondando Jane, uma sensação logo a tomou, a de que alguma voz do além inadvertidamente passaria a sussurrar algo em seus ouvidos, o que acabava por, de forma instintiva, fazê-la olhar de um lado ao outro constantemente e certificar-se de que estava desacompanhada.

Ela esfregou o braço esquerdo gelado. Uma corrente de vento espalhava o aroma de chicletes de blueberry e papéis velhos pelos corredores do colégio. Se tinha uma coisa capaz de apavorá-la era um lugar em que jamais havia estado, embora sentisse como se já tivesse estado ali, vazio, escuro, descomunalmente silencioso e saber que por todos os passadiços já estivera gente estranha como aquele primeiro garoto a barrá-la na entrada. E se fossem como na South, e tivesse algum tipo de ritual de iniciação para calouros como ela?

O vento era tão forte que por um segundo os fios na altura de seus ombros tamparam sua visão, e tirá-los foi difícil, mas então Jane viu: no final do corredor ao lado estava um painel de anúncios verde como a grama do lado de fora, e era salpicado de papéis pequeninos aqui e ali. Bem no meio acomodaram o maior, quase branco e com uma foto impressa de algo do século XVI, parecendo ter sido recém colocado, que chamou a sua atenção. Era como uma luz dourada no fim do corredor, quase à letra.

Jane virou e, depois de alguns armários com chicletes grudados, cartinhas semi-enfiadas por suas frestas, rabiscos e enfeites, ela pôde, pois, deslizar as unhas verdes pelo anúncio de uma peça teatral sobre um romance trágico de 1591.

— Romeu e Julieta. Que cafona — falou escarnecedora, notando abaixo do mural um espaço amadeirado onde havia mais folhetos como aquele, por vez dourados e com uma aparência mais nova.

Apanhou o opúsculo sobre eles, e girou a mochila até que pudesse metê-lo no bolso externo. Talvez Hopper deixasse de lado suas indiretas pouco sutis de que se socializar era quase que o principal objetivo de ela estar indo ao colégio, e que, portanto, deveria se esforçar para adentrar qualquer corja idiota dos alunos do primeiro ano, o lar mais popular dos chibantes grotesco e esnobes de Hawkins. Este discurso completava um mês, já estava lhe dando nos nervos. E uma peça, apesar de piegas, era brilhante, porque seria uma ótima forma de socializar.

Jane havia, no dia anterior, aquele de sua chegada à cidade, podido localizar da janela do alojamento de Jeffrey um retiro perfeito para quando quisesse sossego. A rua em que os quatro meninos não-quaisquer cruzaram de Lowriders, contentes como ratinhos nadando em barris de gorgonzola, do lado direito, tinha uma elevação de onde imaginava poder observar o resto da cidade. As falas podiam ser ensaiadas ali.

Girando nos calcanhares, ela voltou pelo passadiço e virou à direita, lado no qual estava localizada a porta de entrada semiaberta. Ela caminhara tão devagar na primeira vez que tentou alcançá-la que estimava ter levado cerca de dez minutos apenas para chegar à metade do frio e lúgubre corredor, e agora acelerava o passo, vendo a luz que adentrava o colégio aumentar conforme ela se aproximava; o sol se punha em tons de laranja e vermelho, como sangue derramado em areia.

Bastaram mais alguns passo aflitos para que ela visse um pequeno objeto cinza no chão, parecendo ter sido pisoteado pelos alunos, com algumas folhas soltas ao redor. Jane, olhando atrás de si por um instante, abaixou e cutucou a capa para espiar por dentro do livro. O que veio a seguir a apavorou com nunca antes;

Sua ausência dói como mil floretes no peito era o que dizia ali. E não seria nada demais, quiçá um pouco estranho, mas um detalhe transformou todo o significado que aquele caderno carregava. Não era a caligrafia de um estudante qualquer. As letras arredondadas, com curvas exageradas nas pontas e em certos pontos arrastadas, eram como as de Jane. Eram de Jane. Achou demasiado bizarro — o seu coração, chegando à conclusão de que algo estava errado antes mesmo d'ela fazê-lo, acelerou ameaçando arrebentar as costeletas —, ela sequer se lembrava de ter escrito aquilo. 

— Droga — murmurou com o último resquício de voz que lhe restava, então Jane decidiu que sentar-se, ainda que naquele assoalho empoeirado, a ajudaria a retomar o fôlego.

Isso não deveria acontecer outra vez, pensou, a cabeça doendo como se o cérebro chacoalhasse, mergulhado num balde de água fria. As pernas tremiam; o coração palpitava; a alma parecia oca; os olhos pesavam; a mente encontrava-se imersa na mais pura confusão e falta de nexo; Jane não se sentia bem.

Foi quando algo finalmente se iluminou em sua cabeça, a primeira imagem clara depois de muitos minutos de aflição ali, no chão.

O quarto lhe trazia uma sensação de conforto e segurança, ao mesmo tempo que era carregado de uma triste solidão e lhe feria o coração. "Como mil floretes no peito". Foi numa estranha e esquecida fase em que seus cabelos sequer tocavam os ombros, como anéis angelicais curtos e que pareciam remeter a alguém que ela agora sentia como se sempre tivesse sido, desde o primórdio dos tempos. Era uma versão pura e apaixonada de si mesma. Em um movimento carregado de dor, a menina marcada apanhou um papel, onde aquela frase cheia de saudade foi lentamente formada. Foi de onde ela veio, de um momento há pouco morto na memória. Michael era a única coisa real que já possuíra, era como o mundo todo habitando um só corpo, uma só alma. Ele era tudo que Jane sempre quis ter. A ausência dele doía como mil floretes no peito. Queimava como um milhão de tochas acesas sob o coração.

Algo amarronzado estacionou defronte a porta, podendo ser visto pela mesma fresta de onde vinha a luz laranja quase inexistente do sol. O singelo soar de uma buzina estridente a deixou em estado de alerta outra vez. Com o mesmo desespero veloz e disparatado com que uma criança faminta persegue um carrinho de sorvete, Jane recolheu as folhas e as encaixou entre o caderno, decidida a analisá-las melhor mais tarde. Ela bateu o jeans enquanto deixava o colégio, e a primeira visão que teve do lado externo foi a de um homem contente e culpado sorrindo, com os dedos tamborilando o volante revestido de couro no ritmo de Rock You Like a Hurricane.

Nada parecia certo naquele momento, especialmente voltar para sua estalagem ao lado dele.

505 days ˓ milevenOnde histórias criam vida. Descubra agora