Quando descobriu que haviam pessoas no mundo em que escolhiam virar religiosas, Francisco não conseguiu esconder sua surpresa. Para ele, que viveu rodeado de freiras em um orfanato conservador, aquele pensamento era impossível.
Sabe-se lá quem eram seus pais. Havia montado, sim, algumas teorias em sua mente: mãe alcoólatra, prostituta, e pai que fuma crack mais do que se enche de cachaça. De todas as histórias, aquela era a que mais gostava. Não que os desejasse mal, longe disso, mas pelo menos assim poderia imaginar que sua vida seria pior se tivesse tido pais. Talvez tivesse tido pais ruins e uma infância mais traumática. Vai saber.
Praticamente nasceu dentro do orfanato. Suas memórias de infância eram todas daquele lugar infernal: paredes velhas com cheiro de mofo, crianças horrendas de todas as idades, padres e freiras que acreditavam em punições chulas como fonte de aprendizado. Já desde novo, aprendeu o que era racismo. As crianças brancas iam mais fácil e as negras ficavam.
Até seus cinco anos, era um garoto feliz e tinha esperanças de que seria adotado logo. Depois, acabou desistindo da ideia de adoção. Já estava velho demais. Uma parte sua fielmente passou a acreditar que, caso fosse adotado, seria por pessoas piores do que as freiras, então ser abandonado não soava mais tão ruim.
Tudo naquele lugar, aliás, era infernal. Na hora do intervalo as crianças iam para o pátio, onde precisariam permanecer independente do frio que estivesse. Os poucos casacos que tinham eram velhos e gastados. Aliás, até o clima daquele lugar era infernal: chovia praticamente todos os dias. Se Deus era o responsável pela chuva, esse sim, com certeza, era tão amargurado quanto o próprio Francisco.
Nasceu de olhos castanho-escuros, mas de tanto enfrentar tempos cinzentos, seus olhos absorveram esse sentimento e o transmitiam naturalmente. O orfanato, entretanto, só não era tão insuportável graças àquele pontinho dourado, desajeitado.
Era em Johan que Francisco encontrava esperanças de que o mundo não fosse tão ruim assim. Afinal, todas as outras crianças beiravam à grosseria e selvageria. Quando se tem um melhor amigo ao seu lado, não importa quantos dias cinzas enfrente: sempre se é possível ver a luz no final de tudo.
Johan era um garoto de olhos azuis e cabelo loiro. Tímido e quieto; quase ninguém além de Francisco e as freiras conhecia sua voz. Era sensível, acima de tudo, bastante companheiro e risonho. Um sorriso magnífico — pensava Francisco — capaz de fazer você esquecer qualquer pensamento ruim que estivesse tendo. Um garoto tão alegre que nada nem ninguém era capaz de fazê-lo triste. O melhor amigo que alguém poderia ter naquele lugar, sem dúvidas alguma.
Mas, nem sempre foi assim. Quer dizer, Francisco sempre foi um garoto solitário por natureza. Enquanto as crianças brincavam no gramado sujo de lama, preferia ficar debaixo de uma árvore e somente as observava. Não era incomum ver brigas naquele lugar, também. Sobravam motivos para não querer se aproximar de ninguém.
Tornou-se um perito na arte de observar; por não saber ler, sua fonte de estudos era o que seus olhos viam: vidas desgraçadas que se alimentavam pelo sofrimento alheio. Praticamente admirava o grupo de garotos mais velhos que gostavam de perseguir os mais novos — provavelmente por inveja —, ainda que não com bons olhos. Achava cômico as garotas, que em uma hora eram melhores amigas, mas em outra já estavam puxando o cabelo uma da outra e abaixando saias alheias.
Uma das crianças que mais chamava sua atenção era Johan: não sabia muito além de seu nome, mas alguma coisa naquele garoto o intrigava. Quer dizer, não tinha muito para saber; timidez era um adjetivo fraco para descrevê-lo, e errôneo.
Johan não se igualava a Francisco no sentido de gostar da solidão. Tentava ao máximo fazer amigos, mas ninguém iria fazer amizade com um garoto tão diferente. Já velho, seis anos, e com uma aparência quase europeia, ressentida, sem motivos aparentes, pela maioria.
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O Mentiroso (COMPLETO)
Mystery / Thriller#5 em PSICOSE || Oriundo de um passado extremamente traumático, Francisco, que viveu a vida inteira dentro de um orfanato, acaba por cruzar-se com o motivo de seus piores pesadelos. O medo, o extremo rancor que sentia; tudo volta à tona quando aquel...