05 | Je te hais

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Tomei meus remédios. Agora deve ficar mais fácil pensar, escrever.

Quem me deu a ideia de começar a escrever foi o próprio Nathaniel. Eu nunca tive uma memória muito boa; não é exatamente aquele lance de esquecer a mochila ao sair pra escola ou esquecer o aniversário de alguém. Na verdade, a minha memória pode ser um pouco confusa. Eu durmo, e, quando eu durmo, eu sonho. Às vezes não consigo definir muito bem o que foi um sonho ou o que foi real.

Escrever ajuda.

Eu morava na rua, mas teve um dia em que eu acordei em um hospital. No começo eu me debatia bastante; arrancava os fios, tentava fugir e até batia em alguns enfermeiros (perdão, enfermeiros). Eu estava com raiva, raiva da minha situação e raiva por não saber o que fazer da minha vida. Eu era só um adolescente sem rumo, do pior tipo clichê existente. O vício em cocaína surgiu depois de alguns anos sendo forçado a ingeri-la pelos garotos mais velhos.

E eu usava bastante, bastante mesmo. Roubava pra poder comprar, e roubava quando não tinha mais dinheiro. Até que o meu coração parou. Foi depois daquela cirurgia em que eu fui declaradamente morto por alguns segundos, onde eu parei de alucinar por alguns momentos e vi aquela figura loira, de olhos azuis.

Um homem não forte no sentido musculoso, mas, sim, com um espírito que cativava os que pecavam em aura como eu. Um espírito forte; tão forte que quando eu o vi pela primeira vez, pensei que ia voltar a ter uma parada cardíaca. Pensei estar alucinando.

Não foi "amor", porquê, por mais que o Nathaniel insista que me amou desde o segundo em que me viu, eu não acredito em amor à primeira vista. Amor é uma construção: depende não só de atração física, mas principalmente dos laços estabelecidos durante um relacionamento. Dizer que o "amor à primeira vista" existe, é negar que ele se fortalece à medida em que vamos nos conhecendo. Eu amo muito mais o Nathaniel agora do que eu amei na primeira vez em que o conheci, e me dá uma certa raiva quando ele diz que me ama do mesmo jeito que me amou há tantos anos.

Eu estava passando por uma crise quando o vi. Estava alucinando.

Quando vi aquele homem loiro de olhos azuis, eu associei ao Johan da minha infância na mesma hora. Nathaniel era um médico fenomenal: era gentil com os pacientes e inteligente ao extremo. No meio daquela crise, entretanto, minha cabeça somente fixou-se à ideia de que alguém como o Johan, que conseguiu ser adotado, poderia ter se tornado alguém como o Nathaniel, que tem estudos. Foi por esse motivo que eu tive raiva dele. Não foi por culpa do Nathaniel, na verdade eu o odiei sem o ter conhecido e hoje sei admitir que isso é errado. Foi mais uma raiva do meu passado que eu prontamente o associei.

E eu era verdadeiramente louco naquela época.

Tentei fugir do hospital mesmo logo após a cirurgia, e quando não consegui, tentei fugir nos dias posteriores. Nathaniel me assistiu xingá-lo gratuitamente e atirar coisas na direção dele. Ainda assim, permaneceu ao meu lado e optou por pegar o plantão noturno para que eu não fugisse.

Se não fosse por isso, eu não seria quem eu sou hoje. Sabe-se lá quem eu seria. Provavelmente estaria morto de tanto apanhar na rua, ou teria morrido na prisão mesmo. Se não fosse pelo Nathaniel...

É tão estranho lembrar disso tudo agora. Eu era realmente louco naquela época, eu poderia apostar a minha vida que o Nathaniel era o Johan. Estava tão louco que não me lembrava o nome daquele garoto da minha infância, somente me lembrava de suas características físicas. É engraçado pensar nisso, do quanto eu culpei Nathaniel por ser quem era, sendo que a culpa nem era dele.

...

Francisco estava limpando o chão do refeitório enquanto ouvia uma música pelos fones de ouvido. Completamente alheio do mundo, só foi perceber que alguém estava cutucando suas costas quando o ritmo das cutucadas se dissociara ao da música. Tirou seus fones e olhou para trás: na mesma hora pensou estar louco de vez.

O Mentiroso (COMPLETO)Onde histórias criam vida. Descubra agora