02| Я тебя ненавижу

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Foi quando eu tinha, tipo, uns dez anos.

Aquele orfanato era tão entediante que as crianças mais velhas também sentiram falta daquele meu amigo. Só não do mesmo jeito que eu sentira. Eu estava quase caindo na real de que ele não voltaria mesmo. Já tinham se passado uns... cinco meses? Bom, cinco meses, talvez seis ou oito, e eu ainda não tinha recebido nenhuma informação nova, carta ou atestado de óbito.

Foi em mais num desses dias chuvosos em que a água da chuva causava um terremoto quando em contato com o chão. Eu estava debaixo de uma telha, tomando todo cuidado para que o livro que eu estava lendo não molhasse — tenham em mente que todos aqueles livros ali eram velhos e não durariam muito tempo com a umidade.

Um grupo de garotos estranhos e rudes se aproximou. De primeira, eu não percebi porque estava lendo, mas meu livro foi chutado pra longe de minhas mãos como se fosse uma bola de futebol.

— O que você tá fazendo? — um deles gritou, como se já não fosse óbvio. Naquele momento, eu, o garoto invisível, tinha sido notado. Eu não era mais um observador, agora eu era um alvo.

Como Johan, o alvo preferido deles, já não estava mais lá, eu fiquei em seu lugar. Eu não culpei Johan por aquilo. Na verdade, eu nem sequer havia pensado que eu viraria o alvo deles durante a ausência do loiro. Foram eles que me contaram mesmo.

— Aquele seu amigo otário foi pra longe daqui. Cê sabe o que isso significa? — um deles me perguntou. Eu não disse nada, até porque eu não sabia.

Eles me derrubaram. E foi desnecessário, visto que eu já estava no chão, sentado, sem fazer mal a ninguém. Mas eles deram um jeito de me chutar e me derrubar mais do que eu já estava derrubado mesmo.

— Você não se sente estúpido? Que o seu amigo retardado saiu daqui antes de você.

Eles tinham, sei lá, uns treze anos? Talvez onze. De qualquer maneira, eram mais fortes que eu.

Mais fortes e mais cruéis; as palavras que eu ouvi naquele dia ficaram atreladas em minha mente até os dias de hoje.

"Ele foi embora e te deixou aqui"

— Ele saiu daqui e você ficou! Você é mais estúpido que eles. Eu ouvi dizer que os casais ricos gostam de levar duas crianças ao invés de uma e teve um outro que saiu daqui naquele dia. Eu aposto que ele nem mesmo tinha te avisado antes de sair.

Eles me chutaram de novo quando eu voltei a sentar, e parecia que o meu silêncio os estava deixando mais irritados ainda. Me chutaram de novo, dessa vez direto no meu rosto e eu não sabia o que fazer ou como reagir.

"Ele foi embora e te deixou aqui"

— Hahaha, você vai ter que ficar no lugar dele agora!

Naquele dia eu apanhei. Feio, de deixar marca e tudo. E não foi só naquele dia, como nos outros que seguiram também. Assim mesmo, sem motivos. Foi quando eu aprendi a definição de sadismo sem a ajuda de um dicionário.

Ainda assim, eu não sentia raiva dele. Não do Johan.

Eu não nasci rancoroso. Sabia que não era culpa do Johan. Eu estava, na verdade, feliz por ele ter saído, porque aí não teria que apanhar mais. Ele era um ano mais velho que eu, mas era mais frágil. Não iria durar muito caso continuasse ali e poderia até ter morrido. Eu não morri; sinal de que eu, nessa realidade, era mais forte.

"Ele foi embora e te deixou aqui"

Quanto mais eu apanhava, mais eu pensava na sorte dele de ter saído daquele lugar horroroso. Eu não senti raiva dele naquele momento. Não foi desde aí que eu comecei a culpá-lo por tudo.

O Mentiroso (COMPLETO)Onde histórias criam vida. Descubra agora