01 | Ich hasse dich

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Eu tinha nove anos quando ele foi embora

Naquela manhã, onde o sol era capaz de fritar um ovo perfeitamente fácil, nós dois tínhamos quebrado a formosa regra da "hora do intervalo", onde supostamente precisávamos ficar do lado de fora. Eu e Johan estávamos no meu dormitório, escondidos debaixo de umas cobertas. O bom de ser invisível é justamente esse: ninguém nunca iria sentir a nossa ausência a ponto de nos ir procurar.

Existia um jogo de tabuleiro naquele orfanato. O único sem ser damas. Não era a coisa mais divertida do mundo, mas era o que tínhamos. Johan, em especial, gostava porque não envolvia falar. Eu ainda o estava ensinando a não ter vergonha de sua língua presa, mas paciência, tem gente que nasce tímida mesmo.

E, também tinha aquele sorriso...

Provavelmente era a característica mais marcante daquela criatura horrenda. Um sorriso capaz de abrir o céu acinzentado daquele inferno de lugar. O sorriso que me fazia lembrar que a vida poderia não ser tão miserável quanto eu pensava. É idiota ficar pensando nisso, eu tenho perfeita ciência, mas é uma das poucas memórias boas que me resta.

Johan teve sede e foi tomar água. Eu fiquei deitado na minha cama, arrumando o tabuleiro. Nós íamos jogar damas agora, apesar dele não gostar muito.

Ele precisava ir escondido e não ser visto. Era arriscado, eu sei, um risco grande só pra beber um pouco de água. Se fôssemos pegos ali, em nosso dormitório na hora do intervalo, não só nos mandariam de volta para o pátio, como também nos dariam alguma punição.

De primeira eu achei que alguma freira o tivesse visto; não é como se ele fosse a pessoa mais inteligente do mundo. Certeza que o encontraram no corredor e o mandaram pra fora. Eu até fiquei esperando um pouco, tempo demais pra uma simples ida ao bebedouro, mas fiquei. Fiquei como uns... três minutos? Não é como se tivesse um relógio ali. Mas eu esperei um pouco mais, uns cinco minutos, talvez. Ele poderia ter se perdido — o que não seria uma surpresa.

Novamente eu optei por esperar. Sei s . . . s e t e. . . n o v e . . . o n z e . . . q u i n z e . . . é, já era.

Com toda certeza, ele foi pego no corredor e mandado pro pátio. Idiota desastrado. No pior dos casos, algum garoto mais velho o tinha achado e feito alguma coisa contra ele.

Eu não tinha como saber naquela época, e tampouco tenho como saber agora. Quando decidi ir buscá-lo, descobri que ele não estava no lado de fora. Na verdade, até se supõe que estava, mas em um lugar onde eu não poderia ir. E eu juro que procurei bastante, mesmo quando me disseram que ele não iria voltar. Demorou pra ficha cair. Eu o procurei por mais alguns dias e até achei lugares secretos que nem sabia que existiam. Queria contar pra ele; só pensava em contar pra ele.

Bom, mas agora não daria mais.

Ele era assim, tão estúpido: saiu pra beber água, provavelmente se perdeu e foi adotado nesse meio tempo. Não sei o que aconteceu, só sei que nunca mais o vi depois daquilo.

...

A noite já havia chegado. Francisco trabalhava no período do dia, mas foi obrigado a permanecer no hospital, ainda que não como funcionário. Até poderia aproveitar e pegar o turno da noite para ganhar uns trocados, mas Nathaniel não era muito fã dele chegar em casa tarde.

Deveria se levantar da cadeira, ajeitar seu casaco na cintura e ir embora dali, mas não o fez. Estava sentado ao lado daquele cara — que apesar de não conhecer, já tachava de burro — ouvindo o médico explicar como ele havia conseguido quebrar o braço em vários lugares diferentes graças à ideia estapafúrdia de ter se jogado debaixo de um carro, na pacata tentativa de salvar a um gato idiota.

O Mentiroso (COMPLETO)Onde histórias criam vida. Descubra agora