Sangue Mole, Pedra Eterna - Pt. 2

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Dia 4

Meus trabalhos continuam em carga dobrada após a chegada da delegação Kak em nossa base, o que torna a organização dos dados por mim reunidos uma atividade um tanto exaustiva. Os registros históricos kakianos providenciados pelos mesmos são extensos, e, segundo os próprios, a atuação de pesquisadores no antro sociológico e antropológico tem sido o principal foco de todos os esforços científicos neste mundo atualmente.

Em minha posse, até agora, possuo ensaios, teses, trabalhos de campo, monografias e artigos acadêmicos de toda sorte, no que se reúne a um acervo digital de mais de 100.000 peças científicas de cunho humanístico. Bem, de cunho kakiano.

Seria um tanto extensa a descrição dos objetos de estudo de cada peça, mas os temas possuem títulos interessantíssimos, traduzidos por Fyodor (a contragosto), como a "Representação Hegemônica Analítica No Âmbito Político: Um Estudo Sobre Identidade Peniana"; "Controle Linguístico Universal e a Essência do Diorama Estético Social: Um Conceito Perverso"; e, aquele o qual será degustado por mim com maior cuidado, "Débito Social, Representatividade Antropofágica e Movimentos Gênero-Urbanísticos: Sonhos Em Perigo!"

Com trabalhos acadêmicos tais como estes, não haveria como a sociedade kakiana ser de outra forma senão evoluída em seu espírito igualitário!

Os Kaks diplomatas, mais uma vez, ainda se dispuseram a descrever a mim as nuances de sua sociedade de modo mais informal, alimentando meu respeito por essa raça.

Durante nossas conversas, uma estranha dúvida que me martelava silenciosamente o cérebro veio à tona, e não pude deixar de expressá-la. Talvez devesse ter deixado de lado essa irrelevante intrusão.

Eis a questão: ao expressar aos diplomatas minha preocupação para com a multidão Kak reunida em volta de nossa base, a qual, mesmo após a torrente de mísseis lançados sobre nós, jamais havia se deslocado, indaguei sobre a estranha falta de senso de autopreservação dessa multidão.

Tudo o que recebi como resposta foi o que julguei ser um dar-de-ombros kakiano e a tradução de Fyodor: "Ninguém, em momento algum, esteve em perigo mortal, dr. Lindelm."

Dia 5

Júnior está de volta. Ele se esgueirou pelos vigias de nossa base durante a noite, sabendo que, caso fosse pego em flagrante, provavelmente seria o fim de sua carreira acadêmica a qual mal se iniciou. Acordei com o rapaz no beliche ao meu lado, roncando como um cão, e deixei estar até que acordasse para interrogá-lo sobre suas peripécias indevidas.

Pouco importa, pois chegou o momento decisivo de meu trabalho aqui. Um momento de rara ocasião para um xenoetnógrafo neste meio de trabalho há tantos anos. Os acordos foram feitos e os limites traçados por Fyodor e por mim sobre nossa súbita vinda a este planeta, e os embaixadores Kak estão de acordo. É hora de deixar a familiar segurança de nossa base e explorar a sociedade Kak em primeira mão.

Há uns cinco ou seis cliques a noroeste, do outro lado das colinas, encontra-se uma das maiores metrópoles kakianas, a nós descrita pela delegação Kak. Fomos convidados a visitá-la, Fyodor e eu. Neste momento, me encontro escrevendo para acalmar os ânimos e não me atrapalhar durante a preparação de meus instrumentos e material de pesquisa. Não é sempre que uma espécie sapiente se mostra assim tão aberta a visitantes alienígenas como nós.

E quando eu já imaginava que Júnior perderia a oportunidade de se juntar a nós, livrando-nos desta vez de suas más-aventuranças juvenis, o meu ingrato assessor decide dar as caras ao meu lado no refeitório.

"O sr. não há de acreditar, sr. Lindelm!" disse ele, sem parar de mastigar a comida, e se pôs a narrar o que diabos fazia em sua ausência.

O maldito rapaz dizia, com toda a naturalidade irreverente de um delinquente, como ele havia avistado um conglomerado de cabanas ao longe, além da plantação de pomk. Com o mesmo tom irritante, disse como caminhara até as cabanas sem pensar, logo percebendo que, na verdade, os imaginados casebres tratavam-se de parte de um enorme amontoado urbano de casas e edifícios dos Kak.

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