Quando Ana tocou a campainha do impressionante sobrado, o alarme estridente composto por dois mastiff ingleses e um pequenino pastor shetland a fez lembrar por que sempre evitava as festinhas na casa de Natália Cavalcanti.
De alguma forma, seu noivo havia convencido-a a vir. Talvez o fato de que esta seria a última oportunidade para reunir toda a turma da faculdade, antes de se casarem, perderem-se pelo mundo e virarem sombras da próxima geração jovem.
Mesmo assim, já se arrependia.
- Cala boca, cambada! - ouviu-se uma acridez vocal vinda de trás do portão alto e os cães se calaram, exceto pelo shetland. - Vai pro jardim também, Ranço! Já! Para! Capetinha...
Ana cruzou os braços, batendo um pé rabugento na calçada, e encarou Bruno ao seu lado.
- É a própria. - disse ele, com um dar de ombros à noiva. Ela olhou para o relógio do celular, já a cobiçar o final daquela noite.
- Não diga. Por um momento, achei que fosse a tia morta dela. A voz está ainda mais parecida.
Bruno levou um dedo aos lábios ao ouvir uma chave no portão. Um chacoalhão de cá, uns chutes em baixo, e a velha entrada se abriu com resmungos de ferrugem no chão de pedra.
Da abertura, uma estatura feminina baixa e vampiresca tentou esboçar boas-vindas. Aos pés dela, o pequeno shetland escapou com alegria.
- Ranço, não!
Bruno se agachou, esticando braços peremptórios para agarrar o cão, que se esquivou ao proclamar o vestido de Ana seu novo inimigo.
- Droga. Fica calma, ele não morde.
- Ah, é mesmo?
O shetland já havia cravados os dentes nos acabamentos sedosos de uma Ana admiravelmente contida, quando foi apanhado e forçado a soltar o tecido. Balançou as pernocas finas ao ser içado até o ombro da dona.
Bruno aguardou até decidir que o cão já parecia confortável o suficiente no colo de Natália, e que era bom fazer os cumprimentos antes que algum tipo de bomba estourasse. Ana não parecia feliz.
- Oi, Nati. Obrigado pela... ajuda.
- Foi nada. - ela chutava o teimoso portão com um calcanhar para alargar a passagem enquanto estendia a mão livre ao casal. Quando pareceu satisfeita com a abertura, virou-lhes as costas e entrou, dando uma última ombrada no caminho que abriu mais dez centímetros de entrada.
Bruno seguiu a anfitriã, virando-se e puxando a mão de Ana para acompanhá-lo, mais por não querer se ver a sós com Natália no estacionamento mal iluminado do que para forçá-la a entrar.
- Somos os primeiros? - perguntou, galgando o chão, tentando não pisar em merda canina. Natália lutava com o portão para fechá-lo, com Ranço no colo.
- Pelo contrário. O capitão e a namorada já chegaram, e o Fefo está preparando drinques desde as seis horas.
- Hum. Por "preparando" você quer dizer "degustando".
- Algo assim. - Natália tomou a frente do casal ao vencer o portão e soltou Ranço com uma condição vaga de que ele se comportasse, a qual, para o alívio de Ana, foi respeitada. Entraram na casa.
A primeira área do interior era um pequeno corredor acarpetado e vazio, onde o cheiro de mofo alertava o que estava por vir. O único objeto presente ali, além da escadaria, foi o que chamou a atenção de Bruno.
- Parece que não conseguiu vender a tia Claudia. - ele apontava para um velho retrato desbotado do que deveria ser uma mulher altiva e séria aos seus vinte anos. Analisando a tinta, esbranquiçada pelo tempo no rosto e cabelos da mulher, Bruno imaginou se o retrato não teria envelhecido junto com a anciã.
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Acervo do Multiverso
Science FictionUm astrofísico descobre a verdade por trás da criação do universo, e outros documentos.