Entrevista com o canibal - Pt. 3

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Como eu me sentia? Quer uma descrição daquele estado de espírito? Bem, não havia culpa alguma. Não havia remorso, pena, ressentimento ou autopiedade. Estava tudo enterrado sob o entulho, como aquela enorme cratera coberta com o gelo denso, nas sombras da Casa de Mykhail.

Eu citei alguns motivos pelos quais Feixe era popular nos campos de batalha. Esqueci-me do mais importante.

No primeiro conflito histórico onde a humanidade se deu conta de como era boa em inventar métodos para se massacrar, houve um estranho acontecido, uma luz em meio à chacina incessante.

Era Natal na Primeira Grande Guerra, e uma série de tréguas deram-se ao longo da Terra de Ninguém. Homens aparentemente se cansam de se matar, sabe? Portanto, aproveitaram aquele dia mágico para tomar um fôlego, trocar presentes e até fraternizar com os camaradas no lado oposto do front, através do matadouro. Apenas um dia, e então todos deveriam voltar ao inferno.

Acontece que não é tão fácil assim voltar a matar o inimigo quando se dá uma boa olhada em seu rosto, quando se vê que ele é um rapaz qualquer como você: humano, assustado, fiel, e provavelmente com uma família apavorada esperando em casa.

As tréguas foram rapidamente proibidas pelo alto escalão, é claro. O que não as impediu de perpetuar ao longo da guerra.

Então, um século e meio depois, Feixe resolveu esse pequeno problema. Não era apenas a velocidade, a estamina, a anestesia. Era a quase perfeita ausência de humanidade que o Meta nos dava.

Sem dor física era ótimo. Sem dor na alma era muito melhor. E eu não sentia dor alguma.

Mas ela viria. Ah, ela viria.

- São últimos. – disse Mykhail após lançar-me uma sacola. Acenei-lhe um obrigado mudo do teto de meu motor home. O veículo estava enterrado até a metade pela neve. - Então...

- Não. – antecipei.

- Por quê? Aqui, frio, solidão... a vista de uma maldita cratera feia. Por que não ficar conosco, volk?

- Eu tenho um aquecedor.

- Vai acabar bateria do veículo...

- Não é uma bateria, é um mini reator de fusão, Mykhail. Não vai acabar nos próximos meses, garanto a você. – eu disse, ríspido, e pulei para a rampa que havia cavado na neve para acessar a porta da cozinha. Abri-a e ouvi os passos de Mykhail.

- Eu perdoo o que fez, Giom.

Parei e me virei, sorriso de gracejo estampado no rosto. Eu estava pouco me lixando. - Porra, que ótimo.

- Quero dizer... – o velho pausou, buscando palavras difíceis em seu vocabulário da língua global. – ... eu compremeto o que fez.

- Oh, você... você compreende? – fechei a porta novamente. Meu sorriso se fora. – Oh, eu me sinto muito melhor, Mykhail, muito obrigado. Quando chegamos aqui, eu vi você arrancar uma bombinha de Feixe da boca de um cadáver e dar uma baforada. Ficou de pé, braços abertos, todo satisfeito e orgulhoso de si numa sala repleta de gente morta, e se vangloriou de seu laboratoriozinho. Seus companheiros, Mykhail. Mortos. Duros. Sem falar no Borys...

- Aah, Borys! Borys isso, Borys aquilo, Borys, Borys, Borys! Você enterrou Borys! – gritou o velho, lançando o conteúdo de sua garrafa pelos ares. Seguiu com um chute na neve fofa e o mais inesperado berro.

- Mas que p... – tentei dizer.

- Esqueça compreensão! – deu um gole na garrafa e apontou a boca a mim. - Você, Giom, assassino, psicopata de carteirinha, isso sim!

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