Entrevista com o canibal - Pt. 2

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O tempo se abriu na cidade deserta e a neve derreteu como se dissesse "ei, hora de enterrar seus mortos".

Peguei uma pá do motor home e, revezando, fizemos quatro ou cinco funerais no primeiro dia, Olek, Halyna e eu, o que só era possível devido ao Feixe. Mesmo assim, estávamos esgotados ao anoitecer, física e emocionalmente. Vi Olek dizer tributos a seus camaradas mortos. Ele parou depois de alguns.

Halyna não se apresentou para o serviço funerário no segundo dia. Não a culpo. Deixando de lado a expressão indecifrável de Olek, o meu mau-humor e, é claro, os corpos, a garota já tinha o suficiente com que se preocupar. Pylyp se negava a comer qualquer coisa e Mykhail a estava deixando louca na "cozinha mágica". Ela reclamava bastante.

Acontece, porém, que escutar o desabafo incessante de uma garota, entre latas de conservados e bombinhas de Feixe, se torna facilmente a melhor parte dos dias depois de cavar umas quinze covas.

- Não é exatamente uma figura paterna. – disse Halyna certa vez. Observávamos Mykhail entrar e sair da cozinha onde preparava Feixe o dia inteiro.

- Eu não saberia dizer. – respondi.

- Por quê? Não conheceu seu pai, Giom? – ela perguntou.

Era uma daquelas perguntas que não se precisa pensar para responder. Sim ou não bastaria, mas a resposta simples se tornara uma sopa de troféus macabros no meu cérebro. Dizer que eu odiava meu pai seria um exagero, mas ao menos o sentimento estaria lá.

Não, eu não odiava papai. Eu não sentia absolutamente merda alguma por papai. Por quê? Não faço a mínima ideia. Mas esse buraco emocional é um dos vazios que só uma super droga pode preencher, ainda que temporariamente.

Talvez seja por isso que deixei aquele leão devorá-lo naquela savana africana. O vazio, porém... Ora, não se pode matar o nada.

- Qual é a do Olek, afinal? – mudei de assunto. – Me sinto um tagarela perto dele.

- Isso é porque você fala duas palavras enquanto ele fala zero. – ela riu, me cutucando a bochecha. – Vocês combinam.

- Acho que ele nem sabe meu nome, Lyn. Enterramos quinze pessoas mortas lá fora, juntos, e as únicas palavras a saírem da boca dele foram uma ou duas homenagens quaisquer.

- Hmmm. Exato, vocês enterraram quinze corpos, Giom. Juntos. Não é uma amizade qualquer aquela que é selada dessa maneira.

- Batizada pelos mortos. – brinquei. Halyna deu um sorriso com os olhos enquanto, imaginei, procurava um modo de transformar minhas palavras em algo mais profundo do que realmente era.

- São irmãos de guerra, agora. – ela disse.

- Eu não acho que somos sequer amigos...

- Giom, pensa rápido! – Mykhail me interrompeu ao apontar a cabeça pela porta da cozinha e arremessar uma bombinha inaladora em minha direção.

A peguei, observei o pequeno tubo e chacoalhei.

- Vazia, velho maldito. – eu disse.

- Opa! Espere. – disse Mykhail, e desapareceu novamente pela porta. Voltou poucos segundos depois carregando três caixas empilhadas e as depositou aos meus pés. – E agora, o que acha?

Olhei para ele com a expressão de desconfiança que pessoas como Mykhail mereciam. Abri a primeira caixa. Halyna assoviou e minhas sobrancelhas subiram automaticamente. Abri a segunda e sorri. Na terceira, Mykhail, figura paterna ou não, era meu melhor amigo.

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