Pai,
Eu sei que não escrevo há um tempão, e talvez agora não seja o melhor momento. Todos diriam exatamente isso. E que, na verdade, é tarde demais. Eu estou pouco ligando.
Não há ninguém em alguns milhares de anos-luz para me dizer o que fazer, de qualquer forma. Portanto, estou escrevendo a você. Porque, se isso não fizer a mínima diferença a mais ninguém, ao menos faz a mim. Para o bem ou para o mal.
Portanto, como andam as coisas comigo? Ora, você sempre me avisa. Me avisava.
Eles nos foderam, pai. Nos ferraram bonito, acabaram com a gente. "Liga dos Mundos Livres" minha bunda. Terroristas, hipócritas, farisaicos. Genocidas.
De quem foi a culpa, eu não sei. Você sabe como odeio me envolver em política. Algum imbecil no Sindicato Colonial deixou alguém puto da vida, de certo. Lavaram as cuecas de um juirano, insultaram a mãe de um betelgita, assaram a carne do almoço de um sacerdote de Ehffenias. Eu não sei. Eu, sinceramente, não faço a mínima ideia, e estou pouco me lixando.
Apagaram a humanidade bonito, desta vez. É real, pai. Estamos fora de cena, sem volta.
Mas o senhor sabe disso. Sabia.
Eu fiz minha parada de descarga negativa em Tóquio-Sidney, o último planeta do meu trajeto comercial em uma das colônias mais longínquas de nosso território. O lugar fica na unha do dedo mindinho podre do Braço de Perseu, e costumava ser constantemente saqueado por piratas. Aquele maldito acordo com a Liga havia resolvido esse problema. É claro que, agora, os piratas parecem caras muito mais legais do que achávamos.
T-S era um lugar tranquilo, sabe? Há alguma coisa nas colônias em planetas sem atmosfera que me faziam querer ficar, criar raízes num solo infértil e, sei lá, me casar. Formar uma família tosca e lúgubre e morar num daqueles bunkers subterrâneos depressivos, com as paredes cinzentas sem graça e uma taverna com uma história. Você ia amar isso, não é mesmo?
Sempre há uma taverna, e sempre uma história. A taverna de T-S se chamava "O Pioneiro Anônimo", e havia duas versões da história para o nome. A primeira contava que ninguém conhecia o cara que fundou aquela colônia. Após uma breve escavada, eu descobri que o fundador de Tóquio-Sidney foi Ethan Cole Yamada, um terráqueo australiano cuja mãe era japonesa, e um cara um tanto quanto conhecido. Portanto, essa história é balela.
A segunda era um pouco mais crível. Aparentemente, o antigo dono da taverna era um daqueles alcoólatras-problema quando jovem. Um belo dia, diziam, encontrou um velho grupo de Alcoólicos Anônimos em um dos planetas que visitou em suas bebedices. Ele mudou completamente, ficou sóbrio e encontrou Deus.
Então, veio para T-S e abriu um maldito bar. Crível, mas ridícula.
Enfim, chega de histórias sem nexo.
Nunca falei de minha nave para você. Ela se chama Áquila. Ela é uma maravilha. Costumava ser uma nave de incursões de classe Cimitarra da marinha colonial, até que se tornou obsoleta há uma década. Sabe o que fazem com naves de guerra obsoletas? As deixam completamente castradas e botam elas para leilão.
Eu tive sorte quando a comprei, e você sempre dizia que eu tinha uma sorte desgraçada. Bem, a Áquila estava em bom estado, com tudo nos eixos, e seria fácil transformá-la em um fragata de carga. Desconsiderando, é claro, a ninhada de cachorrinhos que veio com ela. Eu os encontrei no convés de engenharia, enfiados numa caixa com furos e escondidos no velho armário do fabricador universal, juntos a um suprimento de ração.
Procurei o antigo capitão da nave para dar um sacode nele, sabendo que, provavelmente, já estaria bem longe. O cuzão fez de propósito. Juro que, quem quer fosse, sabia como eu sou mole para essas coisas.
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Acervo do Multiverso
Ciencia FicciónUm astrofísico descobre a verdade por trás da criação do universo, e outros documentos.