O Menino do Bilhete

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Os pisca-piscas na frente da casa da vizinha brilhavam defeituosos. Naquele vai e vem luminoso, pareciam um enxame de vagalumes perdidos a caminho de uma ceia de Natal frustrada. Parado na calçada, eu tentava achar sentido na malfadada decoração.

Na cabeça, repetia-se o conteúdo da ligação: "Senhor Eduardo... Nina piorou", o tom consternado na voz da secretária da clínica veterinária. Tinham sido dias de visitas, dias a vendo encolhida; os olhinhos juntos; a patinha imóvel, sem pelo, recebendo soro.

Falei para minha mãe que passasse as festas de fim de ano em nossa antiga cidade, com o resto da família, pois ela não havia se habituado à rotina após nossa mudança — e, claramente, não estava feliz. Apavorado de que Nina piorasse, permaneci na casa nova em pleno fim de ano, naquela cidade onde era um forasteiro. Então, o impensável aconteceu: minha cadelinha me deixou. Eu a enterrei no quintal.

A duas semanas do último dia do ano, minha rotina consistia em trabalhar diariamente pelo notebook até cair no sono, mesmo após a longa carga horária da agência. Por um lado, parecia mais fácil: os prazos afastavam os pensamentos difíceis. Na quinta-feira, quando o sono veio interferir num trabalho urgente, percebi que precisaria beber café até que minha alma pingasse cafeína.

Com sono, acabei derrubando uma colher de açúcar. Abaixei-me em busca dela, tentando não pensar no fato de que Nina saltaria alegremente sobre mim caso me visse agachado. Após segundos tateando o espaço abaixo do armário, encostei num pequeno pedaço de plástico. Arrancando-o dali, notei que havia um bilhete, envolto por fita adesiva. Desenrolando o papel, vi a caligrafia infantil:

Olá, futuro amigo,

tô meio triste,

me mudo amanhã.

Agora só tenho brinquedos encaixotados.

Foi aqui onde nasci, no quarto ao lado da cozinha,

mamãe foi ajudada pela enfermeira.

Sentirei saudades daqui

E da menina do mercadinho, Anne.

Hoje, brincamos o dia todo,

comemos bolo e refrigerante,

mamãe falou que era uma despedida.

Se achar essa mensagem,

por favor,

cuide bem da minha casa.

Gui

O bilhete obviamente era de uma criança. Perguntei-me quanto tempo havia se passado desde sua redação; desde que aquela família havia partido. Gui poderia ser Guilherme; Guimarães; Guido; Aguinaldo; um sem-fim de nomes.

Refleti sobre como desconhecemos as vidas tocadas por um lugar, mesmo que permaneçamos nele por anos. Eu nunca conheceria aqueles que tinham preparado o almoço dos filhos naquela cozinha, ou assistido tevê com a família reunida na sala ao lado. Nunca saberia sobre seus medos ou seus desejos, se eram parecidos com os meus, ou se suas rotinas eram radicalmente diferentes da que eu levava.

Mas podia ser que eu estivesse errado. Talvez fosse possível descobrir quem havia escrito aquele bilhete.

*

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