Ontem a noite matei um gato.

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Me aproximei da porta do quarto
e de súbito pelo espelho que mantenho sempre encostado
na parede, vi o desgraçado,
pronto para se apossar dela.
Ele estava prestes ao ápice da coisa.
Por Deus, será que até a mais horrenda das criaturas
não sabe como é sagrada
a cama de um homem?
O que ele estaria pensando?
Minha chance era única.
A porta entre aberta aos fundos
da lavanderia indicava que
o desgraçado ainda tinha uma chance.
Eu não podia errar.
Não me existia tal possibilidade.
Era tudo ou nada.
Em um movimento certeiro,
como um relâmpago, cruzei o quarto.
Ele era veloz,
mas seu movimento se retardou.
Bucetas podem ser o maior
problema na vida de um cara
ou de um gato.
Num pulo certeiro, tranquei a porta.
Seu corpo se chocou
contra o vidro em desespero,
mas não tinha o que fazer.
A porta para ele tinha se fechado,
nem o próprio Deus poderia o acudir.
Saltou para o colchão,
mas naquele jogo
eu era quem dava as peças.
E como um lobo que devora
os ovos de uma galinha
mergulhei sobre os lençóis.
E naquela momento
o fervor de dois corpos vivos
estavam prontos para
entrar em choque.
Agarrei sua jugular
com mãos precisas
Era a maestria de um alicate.
Mas o jogo não seria assim tão fácil.
Minhas mãos coladas sobre sua pele fracida e todos aqueles pelos
que agora voavam entre as paredes.
Com um movimento preciso
e um contorcionismo insano
cravou as unhas em meu braço.
Eram como navalhas.
Navalhas que respondiam
a todo o terror e pavor
que eu podia observar
naquele grandes olhos amarelos.
Um berro.
E apertei mais forte.
Senti enquanto minha
carne era rasgada.
A dor, o sangue.
Os lençóis manchados
de um vermelho vivo.
Mais um berro.
A dor não era nada,
não me faria desistir.
Era o jogo da existência
e eu não  estava disposto
a ser derrotado.
Interferindo no processo natural.
O demônio destruindo a praga.
Um mal necessário.
Eu sentia, muito além
da ardência de minha pele corrompida.
Minha alma ardia.
O sangue, a pulsação.
O fogo em minhas mãos
pronto para reduzir
uma outra alma a cinzas.
Olhei fixamente para aquele monte
de pelos e carnes e dentes e ossos
e vontades.
E os reduzi a nada.
Vi o brilho daqueles grandes
e lindos, sim eram lindos,
aqueles grandes e
lindos olhos amarelados como
falso-jasmim.
Era a beleza e o amargo
do grande terror que
é a vida,
ou que um dia a vida
deveria ter sido. 
Ontem a noite matei um gato
porque eu precisava
me livrar daquele peso.
Eu não podia ver mais
o meu banheiro sujo
e as portas do quarta roupa marcadas.
E agora eu também
teria minha alma marcada.
Ontem a noite matei um gato.
Rasguei a pele e junto dela,
sua existência.
Ontem a noite matei um gato.
E hoje há mais três deles.
E eles me olham atentamente
com esses grandes olhos
azuis e amarelos.
Olhos de beleza infinita
Que enxergam minha culpa.
E além dela, enxergam
minha grande derrota.
Há três deles aqui.
E já não posso mais os matar.
Ontem a noite matei um gato
Mas quem morreu
Foi
Eu.

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