Avança a filha de Araquém nas trevas; pára e escuta.
O grito da gaivota terceira vez ressoa ao seu ouvido; ela vai direito ao lugar d'onde partiu; chega à borda de um tanque; seu olhar investiga a escuridão, e nada vê do que busca.
A voz maviosa, débil como sussurro de colibri, ressoa no silêncio:
— Guerreiro Poti, teu irmão branco te chama pela boca de Iracema.
Só o eco respondeu-lhe.
— A filha de teus inimigos vem a ti porque o estrangeiro te ama, e ela ama o estrangeiro.
A lisa face do lago fendeu-se; e um vulto se mostra, que nada para a margem, e surge fora.
— Foi Martim quem te mandou, pois tu sabes o nome de Poti, seu irmão na guerra.
— Fala, chefe pitiguara; o guerreiro branco espera.
— Torna a ele e diz que Poti é chegado para o salvar.
— Ele sabe; e mandou-me a ti para ouvir.
— As falas de Poti sairão de sua boca para o ouvido de seu irmão branco.
— Espera então que Araquém parta e a cabana fique deserta; eu te guiarei à presença do estrangeiro.
— Nunca, filha dos tabajaras, um guerreiro pitiguara passou a soleira da cabana inimiga, se não foi como vencedor. Conduz aqui o guerreiro do mar.
— A vingança de Irapuã fareja em roda da cabana de Araquém. Trouxe o irmão do estrangeiro bastantes guerreiros pitiguaras para o defender e salvar?
Poti refletiu:
— Conta, virgem das serras, o que sucedeu em teus campos depois que a eles chegou o guerreiro do mar.
Iracema referiu como a cólera de Irapuã se havia assanhado contra o estrangeiro, até que a voz de Tupã, chamado pelo pajé, tinha apaziguado seu furor:
— A raiva de Irapuã é como a andira: foge da luz e voa nas trevas.
A mão de Poti cerrou súbito os lábios da virgem; sua fala parecia um sopro:
— Suspende a voz e o respiro, virgem das florestas, o ouvido inimigo escuta na sombra.
As folhas crepitavam de manso, como se por elas passasse a fragueira nambu. Um rumor, partido da orla da mata, vinha discorrendo pelo vale.
O valente Poti, resvalando pela relva, como o ligeiro camarão, de que ele tomara o nome e a viveza, desapareceu no lago profundo. A água não soltou um murmúrio, e cerrou sobre ele sua límpida onda.
Iracema voltou à cabana; em meio do caminho perceberam seus olhos as sombras de muitos guerreiros que rojavam pelo chão como a intanha.
Araquém, vendo-a entrar, partiu.
A virgem tabajara contou a Martim o que ouvira de Poti; o guerreiro cristão ergueu-se de um ímpeto para correr em defesa de seu irmão pitiguara. Cingiu-lhe o colo Iracema com os lindos braços:
— O chefe não carece de ti; ele é filho das águas; as águas o protegem. Mais tarde o estrangeiro ouvirá em seus ouvidos as falas amigas.
— Iracema, é tempo que teu hóspede deixe a cabana do pajé e os campos dos tabajaras. Ele não tem medo dos guerreiros de Irapuã, tem medo dos olhos da virgem de Tupã.
— Eles fugirão de ti.
— Fuja deles o estrangeiro, como o oitibó da estrela da manhã. Martim promoveu o passo.
— Vai, guerreiro ingrato; vai matar teu irmão primeiro, depois a ti. Iracema te seguirá até aos campos alegres aonde vão as sombras dos que morrem.
— Matar meu irmão, dizes tu, virgem cruel.
— Teu rastro guiará o inimigo aonde ele se oculta.
O cristão estacou em meio da cabana; e ali permaneceu mudo e quedo. Iracema, receosa de fitá-lo, tinha os olhos na sombra do guerreiro, que a chama projetava na vetusta parede da cabana.
O cão felpudo, deitado no borralho, deu sinal de que se aproximava gente amiga. A porta entretecida dos talos da carnaúba foi aberta por fora. Caubi entrou.
— O cauim perturbou o espírito dos guerreiros; eles vêm contra o estrangeiro.
A virgem ergueu-se de um ímpeto:
— Levanta a pedra que fecha a garganta de Tupã, para que ela esconda o estrangeiro.
O guerreiro tabajara, sopesando a laje enorme, emborcou-a no chão.
— Filho de Araquém, deita na porta da cabana, e mais nunca te levantes da terra, se um guerreiro passar por cima de teu corpo.
Caubi obedeceu; a virgem cerrou a porta.
Decorreu breve trato. Ressoa perto o estrupido dos guerreiros; travam-se as vozes iradas de Irapuã e Caubi.
— Eles vêm; mas Tupã salvará seu hóspede.
Nesse instante, como se o deus do trovão ouvisse as palavras de sua virgem, o antro, mudo em princípio, retroou surdamente.
— Ouve! É a voz de Tupã.
Iracema cerra a mão do guerreiro, e o leva à borda do antro. Somem-se ambos nas entranhas da terra.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Iracema - José de Alencar
RomancePublicado no ano de 1865, o livro Iracema é um romance do período romântico da nossa literatura, escrito pelo famoso escritor José de Alencar. Este foi um advogado, político, crítico, jornalista, polemista, dramaturgo, romancista e cronista brasilei...