Poti saudou o amigo e falou assim:
— "Antes que o pai de Jacaúna e Poti, o valente guerreiro Jatobá, mandasse sobre todos os guerreiros pitiguaras, o grande tacape da nação estava na destra de Batuireté, o maior chefe, pai de Jatobá. Foi ele que veio pelas praias do mar até o rio do jaguar, e expulsou os tabajaras para dentro das terras, marcando a cada tribo seu lugar; depois entrou pelo sertão até a serra que tomou seu nome.
"Quando suas estrelas eram muitas, e tantas que seu camucim já não cabia as castanhas que marcavam o número, o corpo vergou para a terra, o braço endureceu como o galho do ubiratã que não verga, seus olhos se escureceram.
"Chamou então o guerreiro Jatobá e disse: — Filho, toma o tacape da nação pitiguara. Tupã não quer que Batuireté o leve mais à guerra, pois tirou a força de seu corpo, o movimento do seu braço e a luz de seus olhos. Mas Tupã foi bom para ele, pois lhe deu um filho como o guerreiro Jatobá.
"Jatobá empunhou o tacape dos pitiguaras. Batuireté tomou o bordão de sua velhice e caminhou. Foi atravessando os vastos sertões, até os campos viçosos onde correm as águas que vêm das bandas da noite. Quando o velho guerreiro arrastava o passo pelas margens, e a sombra de seus olhos não lhe deixava que visse mais os frutos nas árvores ou os pássaros no ar, ele dizia em sua tristeza: — Ah! meus tempos passados!
"A gente que o ouvia chorava a ruína do grande chefe; e desde então passando por aqueles lugares repetia suas palavras; donde veio chamar-se o rio e os campos, Quixeramobim.
"Batuireté veio pelo caminho das garças até aquela serra que tu vês longe, onde primeiro habitou. Lá no píncaro o velho guerreiro fez seu ninho alto como o gavião, para encher o resto de seus dias, conversando com Tupã. Seu filho já dorme embaixo da terra, e ele ainda na outra lua cismava na porta de sua cabana, esperando a noite que traz o grande sono. Todos os chefes pitiguaras, quando acordam à voz da guerra, vão pedir ao velho que lhes ensine a vencer, porque nenhum outro guerreiro jamais soube como ele combater. Assim as tribos não o chamam mais pelo nome, senão o grande sabedor da guerra, Maranguab.
"O chefe Poti vai à serra ver seu grande avô; mas antes que o dia morra, ele estará de volta na cabana de seu irmão. Tens tu outra vontade?"
— O guerreiro branco te acompanha. Ele quer abraçar o grande chefe dos pitiguaras, avô de seu irmão, e dizer ao velho que renasce em seu neto.
Martim chamou Iracema; e partiram ambos guiados pelo pitiguara para a serra do Maranguab, que se levantava no horizonte. Foram seguindo o curso do rio até onde nele entrava o ribeiro de Pirapora.
A cabana do velho guerreiro estava junto das formosas cascatas, onde salta o peixe no meio dos borbotões de espuma. As águas ali são frescas e macias, como a brisa do mar, que passa entre as palmas dos coqueiros, nas horas da calma.
Batuireté estava sentado sobre uma das lapas da cascata; e o sol ardente caía sobre sua cabeça nua de cabelos e cheia de rugas como o jenipapo. Assim dorme o jaburu na borda do lago.
— Poti é chegado à cabana do grande Maranguab, pai de Jatobá, e trouxe seu irmão branco para ver o maior guerreiro das nações.
O velho soabriu as pesadas pálpebras, e passou do neto ao estrangeiro um olhar baço. Depois o peito arquejou e os lábios murmuraram:
— Tupã quis que estes olhos vissem antes de se apagarem o gavião branco junto da narceja.
O abaeté derrubou a fronte aos peitos, e não falou mais, nem mais se moveu.
Poti e Martim julgaram que ele dormia e se afastaram com respeito para não perturbar o repouso de quem tanto obrara na longa vida. Iracema, que se banhava na próxima cachoeira, veio-lhes ao encontro, trazendo na folha da taioba favos de mel puríssimo.
Discorreram os amigos pelas floridas encostas até que as sombras da montanha se estenderam pelo vale. Tornaram então ao lugar onde tinham deixado o Maranguab.
O velho ainda lá estava na mesma atitude, com a cabeça derrubada ao peito e os joelhos encostados à fronte. As formigas subiam pelo seu corpo; e os tuins adejavam em torno e pousavam-lhe na calva.
Poti pôs a mão no crânio do velho e conheceu que era finado; morrera de velhice. Então o chefe pitiguara entoou o canto da morte; e depois foi à cabana buscar o camucim, que transbordava com as castanhas do caju. Martim contou cinco vezes cinco mãos.
Entretanto Iracema colhia na floresta a andiroba, de que foi ungido o corpo do velho no camucim, onde a mão piedosa do neto o encerrou. O vaso fúnebre ficou suspenso ao teto da cabana.
Depois que plantou urtiga em frente à porta, para defender contra os animais a oca abandonada, Poti despediu-se triste daqueles lugares, e tornou com seus companheiros à borda do mar.
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Iracema - José de Alencar
RomancePublicado no ano de 1865, o livro Iracema é um romance do período romântico da nossa literatura, escrito pelo famoso escritor José de Alencar. Este foi um advogado, político, crítico, jornalista, polemista, dramaturgo, romancista e cronista brasilei...