Os guerreiros tabajaras, excitados com as copiosas libações do espumante cauim, se inflamam à voz de Irapuã que tantas vezes os guiou ao combate, quantas à vitória.
Aplaca o vinho a sede do corpo, mas acende outra sede maior na alma feroz. Rugem vingança contra o estrangeiro audaz que, afrontando suas armas, ofende o deus de seus pais, e o chefe da guerra, o primeiro varão tabajara.
Lá tripudiam de furor, e arremetem pelas sombras; a luz vermelha do ubiratã, que brilha ao longe, os guia à cabana de Araquém. De espaço em espaço erguem-se do chão os que primeiro vieram para vigiar o inimigo.
— O pajé está na floresta! murmuram eles.
— E o estrangeiro? pergunta Irapuã.
— Na cabana com Iracema.
O grande chefe lança terrível salto; já é chegado à porta da cabana, e com ele seus valentes guerreiros.
O vulto de Caubi enche o vão da porta; suas armas guardam diante dele o espaço de um bote do maracajá.
— Vis guerreiros são aqueles que atacam em bando como os caititus. O jaguar, senhor da floresta, e o anajê, senhor das nuvens, combatem só o inimigo.
— Morda o pó a boca torpe que levanta a voz contra o mais valente guerreiro dos guerreiros tabajaras.
Proferidas estas palavras, ergue o braço de Irapuã o rígido tacape, mas estaca no ar: as entranhas da terra outra vez rugem, como rugiram, quando Araquém acordou a voz tremenda de Tupã.
Levantam os guerreiros medonho alarido, e cercando seu chefe, o arrebatam ao funesto lugar e à cólera de Tupã, contra eles concitado.
Caubi estende-se de novo na soleira da porta; seus olhos adormecem; mas seu ouvido vela no sono.
A voz de Tupã emudeceu .
Iracema e o cristão, perdidos nas entranhas da terra, descem a gruta profunda. Súbito, uma voz que vinha reboando pela crasta, encheu seus ouvidos:
— O guerreiro do mar escuta a fala de seu irmão?
— É Poti, o amigo de teu hóspede, disse o cristão para a virgem.
Iracema estremeceu:
— Ele fala pela boca de Tupã.
Martim respondeu enfim ao pitiguara.
— As falas de Poti entram n'alma de seu irmão.
— Nenhum outro ouvido escuta?
— Os da virgem que duas vezes em um sol defendeu a vida de teu irmão!
— A mulher é fraca, o tabajara traidor, e o irmão de Jacaúna prudente.
Iracema suspirou e pousou a cabeça no peito do mancebo:
— Senhor de Iracema, cerra seus ouvidos, para que ela não ouça.
Martim repeliu docemente a gentil fronte:
— Fale o chefe pitiguara; só o escutam ouvidos amigos e fiéis.
— Tu ordenas, Poti fala. Antes que o Sol se levante na serra, o guerreiro do mar deve partir para as margens do ninho das garças; a estrela morta o guiará às alvas praias. Nenhum tabajara o seguirá, porque a inúbia dos pitiguaras rugirá da banda da serra.
— Quantos guerreiros pitiguaras acompanham seu chefe valente?
— Nenhum; Poti veio só com suas armas. Quando os espíritos maus das florestas separaram o guerreiro do mar de seu irmão, Poti veio em seguimento do rastro. Seu coração não deixou que voltasse para chamar os guerreiros de sua taba; mas expediu seu cão fiel ao grande Jacaúna.
— O chefe pitiguara está só; não deve rugir a inúbia que chamará contra si todos os guerreiros tabajaras.
— É preciso para salvar o irmão branco; Poti zombará de Irapuã, como zombou quando combatiam cem contra ti.
A filha do pajé que ouvira calada, debruçou-se ao ouvido do cristão:
— Iracema quer te salvar e a teu irmão; ela tem seu pensamento. O chefe pitiguara é valente e audaz; Irapuã é manhoso e traiçoeiro como a acauã. Antes que chegues à floresta, cairás; e teu irmão da outra banda cairá contigo.
— Que fará a virgem tabajara para salvar o estrangeiro e seu irmão? perguntou Martim.
— Mais um sol e outro, e a lua das flores vai nascer. É o tempo da festa, em que os guerreiros tabajaras passam a noite no bosque sagrado, e recebem do pajé os sonhos alegres. Quando estiverem todos adormecidos, o guerreiro branco deixará os campos do Ipu, e os olhos de Iracema, mas não sua alma.
Martim estreitou a virgem ao seio; mas logo a repeliu. O toque de seu corpo, doce como a açucena da mata, e quente como o ninho do beija-flor, espinhou seu coração, porque lhe recordou as palavras terríveis do pajé.
A voz do cristão transmitiu a Poti o pensamento de Iracema; o chefe pitiguara, prudente como o tamanduá, pensou e respondeu:
— A sabedoria falou pela boca da virgem tabajara. Poti espera o nascimento da Lua.
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Iracema - José de Alencar
RomancePublicado no ano de 1865, o livro Iracema é um romance do período romântico da nossa literatura, escrito pelo famoso escritor José de Alencar. Este foi um advogado, político, crítico, jornalista, polemista, dramaturgo, romancista e cronista brasilei...