A alegria ainda morou na cabana, todo o tempo que as espigas de milho levaram a amarelecer.
Uma alvorada, caminhava o cristão pela borda do mar. Sua alma estava cansada.
O colibri sacia-se de mel e perfume; depois adormece em seu branco ninho de cotão, até que volta no outro ano a lua das flores. Como o colibri, a alma do guerreiro também satura-se de felicidade, e carece de sono e repouso.
A caça e as excursões pelas montanhas em companhia do amigo, as carícias da terna esposa que o esperavam na volta, o doce carbeto no copiar da cabana, já não acordavam nele as emoções de outrora. Seu coração ressonava.
Iracema brincava pela praia: os olhos dele retiravam-se dela para se estenderem pela imensidade dos mares.
Viram umas asas brancas, que adejavam pelos campos azuis. Conheceu o cristão que era uma grande igara de muitas velas, como construíam seus irmãos; e a saudade da pátria apertou em seu seio.
Alto ia o Sol; e o guerreiro na praia seguia com os olhos as asas brancas que fugiam. Debalde a esposa o chamou à cabana, debalde ofereceu a seus olhos, as graças dela e os frutos melhores do campo. Não se moveu o guerreiro, senão quando a vela sumiu-se no horizonte.
Poti voltou da serra, onde pela vez primeira fora só. Tinha deixado a serenidade na fronte de seu irmão e achava ali a tristeza. Martim saiu-lhe ao encontro:
— A igara grande do branco tapuia passou no mar. Os olhos de teu irmão a viram voar para as margens do Mearim, onde estão os aliados dos tupinambás, inimigos de tua e minha raça.
— Poti é senhor de mil arcos; se é teu desejo, ele te acompanhará com seus guerreiros às margens do Mearim para vencer o tapuitinga e seu amigo, o traidor tupinambá.
— Quando for tempo teu irmão te dirá.
Os guerreiros entraram na cabana, onde estava Iracema. A maviosa canção nesse dia tinha emudecido nos lábios da esposa. Ela tecia suspirando a franja da rede materna, mais larga e espessa que a rede do himeneu.
Poti, que a viu tão ocupada, falou:
— Quando a sabiá canta é o tempo do amor; quando emudece, fabrica o ninho para sua prole; é o tempo do trabalho.
— Meu irmão fala como a rã quando anuncia a chuva; mas a sabiá que faz seu ninho, não sabe se dormirá nele.
A voz de Iracema gemia. Seu olhar buscou o esposo. Martim pensava: as palavras de Iracema passaram por ele, como a brisa pela face lisa da rocha, sem eco nem rumores.
O Sol brilhava sempre sobre as praias do mar, e as areias refletiam os raios ardentes; mas nem a luz que vinha do céu, nem a luz que ia da terra espancaram a sombra n'alma do cristão. Cada vez o crepúsculo era maior em sua fronte.
Chegou das margens do Acarú um guerreiro pitiguara, mandado por Jacaúna a seu irmão Poti. Ele veio seguindo o rastro dos viajantes até o Trairi, onde os pescadores o guiaram à cabana.
Poti estava só no copiar; ergueu-se e abaixou a fronte para escutar com respeito e gravidade as palavras que lhe mandava seu irmão pela boca do mensageiro:
— O tapuitinga, que estava no Mearim, veio pelas matas até o princípio da Ibiapaba, onde fez aliança com Irapuã, para combater a nação pitiguara. Eles vão descer da serra às margens do rio em que bebem as garças, e onde tu levantaste a taba de teus guerreiros. Jacaúna te chama para defender os campos de nossos pais: teu povo carece de seu maior guerreiro.
— Volta às margens do Acaraú, e teu pé não descanse enquanto não pisar o chão da cabana de Jacaúna. Quando aí estiveres, dize ao grande chefe: — "Teu irmão é chegado à taba de seus guerreiros." — E tu não mentirás.
O mensageiro partiu.
Poti vestiu suas armas e caminhou para a várzea, guiado pelo passo de Coatiabo. Ele o encontrou muito além, vagando entre os canaviais que bordam as margens de Jacareí.
— O branco tapuia está na Ibiapaba para ajudar os tabajaras a combater contra Jacaúna. Teu irmão corre a defender a terra de seus filhos, e a taba onde dorme os camucins de seus pais. Ele saberá vencer depressa para voltar à tua presença.
— Teu irmão parte contigo. Nada separa dois guerreiros amigos quando troa a inúbia da guerra.
— Tu és grande, como o mar, e bom como o céu.
Os dois amigos abraçaram-se; e seguiram com o rosto para as bandas do nascente.
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Iracema - José de Alencar
RomancePublicado no ano de 1865, o livro Iracema é um romance do período romântico da nossa literatura, escrito pelo famoso escritor José de Alencar. Este foi um advogado, político, crítico, jornalista, polemista, dramaturgo, romancista e cronista brasilei...