Uma tarde Iracema viu de longe dois guerreiros que avançavam pelas praias do mar. Seu coração palpitou mais apressado.
Instante depois ela esquecia nos braços do esposo tantos dias de saudade e abandono, que passara na solitária cabana. Outra vez sua graça encheu os olhos do cristão; a alegria voltou a habitar em sua alma.
Como a seca várzea, com a vinda do nevoeiro, reverdece e matiza-se de flores, a formosa filha do sertão com a volta do esposo reanimou-se; e sua beleza esmaltou-se de meigos e ternos sorrisos.
Martim e seu irmão haviam chegado à taba de Jacaúna, quando soava a inúbia; eles guiaram ao combate os mil arcos de Poti. Ainda dessa vez os tabajaras, apesar da aliança dos brancos tapuias do Mearim, foram levados de vencida pelos valentes pitiguaras.
Nunca tão disputada vitória e tão renhida pugna se pelejou nos campos que regam o Acaraú e o Camucim; o valor era igual de parte a parte, e nenhum dos dois povos fora vencido, se o deus da guerra não tivesse decidido dar estas plagas à raça do guerreiro branco, aliada dos pitiguaras.
Logo após a vitória o cristão tornara às praias do mar, onde construíra sua cabana. De novo sentiu em sua alma a sede do amor; e tremia de pensar que Iracema houvesse partido, deixando ermo aquele sítio tão povoado outrora pela felicidade.
O cristão amou outra vez a filha do sertão, como da primeira vez, quando parece que o tempo não poderá exaurir o coração. Mas breves sóis bastaram para murchar aquelas flores de um coração exilado da pátria.
O imbu, filho da serra, se nasceu na várzea porque o vento ou as aves trouxeram a semente, vingou, achando boa terra e fresca sombra; talvez um dia copou a verde folhagem e enflorou. Mas basta um sopro do mar, para tudo murchar. As folhas lastram o chão; as flores, leva-as a brisa.
Como o imbu na várzea era o coração do guerreiro branco na terra selvagem. A amizade e o amor o acompanharam e sustiveram algum tempo; mas agora longe de sua casa e de seus irmãos, sentiu-se em um ermo. O amigo e a esposa não chegavam mais à sua existência, cheia de grandes e nobres ambições.
Passava os já tão breves, agora longos sóis, na praia, ouvindo gemer o vento e soluçar as ondas. Os olhos, engolfados na imensidade do horizonte, buscavam, mas embalde, discenir do azul diáfano a alvura de uma vela perdida nos mares.
À distância curta da cabana, se elevava à borda do oceano um alto morro de areia; pela semelhança com a cabeça do crocodilo o chamavam os pescadores Jacarecanga. Do seio das brancas areias escaldadas pelo ardente sol, manava uma água fresca e pura; assim destila a dor lágrimas doces de alívio e consolo.
A esse monte subia o cristão; e lá ficava cismando em seu destino. Às vezes lhe vem à mente a idéia de tornar à sua terra e aos seus; mas ele sabe que Iracema o acompanhará; e essa lembrança lhe remorde o coração. Cada passo mais que afaste dos campos nativos a filha dos tabajaras, agora que não tem o ninho de seu coração para abrigar-se, é uma porção da vida que lhe rouba.
Poti conhece que Martim deseja estar só, e afasta-se discreto. O guerreiro sabe o que aflige a alma do seu irmão; e tudo espera do tempo, porque só o tempo endurece o coração do guerreiro, como o cerne do jacarandá.
Iracema também foge dos olhos do esposo, porque já percebeu que esses olhos tão amados se turbam com a vista dela, e em vez de se encherem de sua beleza como outrora, a despedem de si. Mas os olhos dela não se cansam de acompanhar à parte e de longe o guerreiro senhor, que os fez cativos.
Ai dela!... Sentiu já o golpe no coração e como a copaíba ferida no âmago, destila lágrimas em fio.
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Iracema - José de Alencar
RomancePublicado no ano de 1865, o livro Iracema é um romance do período romântico da nossa literatura, escrito pelo famoso escritor José de Alencar. Este foi um advogado, político, crítico, jornalista, polemista, dramaturgo, romancista e cronista brasilei...