O alvo disco da Lua surgiu no horizonte.
A luz brilhante do Sol empalidece a virgem do céu, como o amor do guerreiro desmaia a face da esposa.
— Jaci!... Mãe nossa!... exclamaram os guerreiros tabajaras.
E brandindo os arcos lançaram ao céu com a chuva das flechas o canto da lua nova:
"Veio no céu a mãe dos guerreiros; já volta o rosto para ver seus filhos. Ela traz as águas, que enchem os rios e a polpa do caju.
"Já veio a esposa do Sol; já sorri as virgens da terra, filhas suas. A doce luz acende o amor no coração dos guerreiros e fecunda o seio da jovem mãe."
Cai a tarde.
Folgam as mulheres e os meninos na vasta ocara; os mancebos, que ainda não ganharam nome de guerra por algum feito brilhante, discorrem no vale.
Os guerreiros seguem Irapuã ao bosque sagrado, onde os espera o pajé e sua filha para o mistério da jurema. Iracema já acendeu os fogos da alegria. Araquém está imóvel e extático no seio de uma nuvem de fumo.
Cada guerreiro que chega depõe a seus pés uma oferenda a Tupã. Traz um a suculenta caça; outro a farinha d'água; aquele o saboroso piracém da traíra. O velho pajé, para quem são estas dádivas, as recebe com desdém.
Quando foram todos sentados em torno do grande fogo, o ministro de Tupã ordena o silêncio com um gesto, e três vezes clamando o nome terrível, enche-se do deus, que o habita:
— Tupã!... Tupã!... Tupã!...
Três vezes o eco ao longe repercutiu.
Vem Iracema com a igaçaba cheia do verde licor. Araquém decreta os sonhos a cada guerreiro, e distribui o vinho da jurema, que transporta ao céu o valente tabajara.
Este, grande caçador, sonha que os veados e as pacas correm adiante de suas flechas para se traspassarem nelas; fatigado por fim de ferir, cava na terra o bucã, e assa tamanha quantidade de caça que mil guerreiros em um ano não acabaram.
Outro, fogoso em amores, sonha que as mais belas virgens dos tabajaras deixam a cabana de seus pais e o seguem cativas de seu querer. Nunca a rede de chefe algum embalou mais voluptuosas carícias, que ele as frui naquele êxtase.
O herói sonha tremendas lutas e horríveis combates, de que sai vencedor, cheio de glória e fama. O velho renasce na prole numerosa, e como o seco tronco, donde rebenta nova e robusta sebe, cobre-se ainda de flores.
Todos sentem a felicidade tão viva e contínua, que no espaço da noite cuidam viver muitas luas. As bocas murmuram; o gesto fala; e o pajé, que tudo escuta e vê, colhe o segredo das almas desnudas.
Iracema, depois que ofereceu aos guerreiros o licor de Tupã, saiu do bosque. Não permitia o rito que ela assistisse ao sono dos guerreiros e ouvisse falar os sonhos.
Foi dali direito à cabana onde a esperava Martim:
— Toma tuas armas, guerreiro branco. É tempo de partir.
— Leva-me aonde está Poti, meu irmão.
A virgem caminhou para o vale; o cristão a seguiu. Chegaram à falda do rochedo, que ia morrer à beira do tanque, em um maciço de verdura.
— Chama teu irmão!
Martim soltou o grito da gaivota. A pedra que fechava a entrada da gruta caiu; e o vulto do guerreiro Poti apareceu na sombra.
Os dois irmãos encostaram a fronte na fronte e o peito no peito, para exprimir que não tinham ambos mais que uma cabeça e um coração.
— Poti está contente porque vê seu irmão, que o mau espírito da floresta arrebatou de seus olhos.
— Feliz é o guerreiro que tem ao flanco um amigo como o bravo Poti; todos os guerreiros o invejarão.
Iracema suspirou, pensando que a afeição do pitiguara bastava à felicidade do estrangeiro.
— Os guerreiros tabajaras dormem. A filha de Araquém vai guiar os estrangeiros.
A virgem seguiu adiante; os dois guerreiros após. Quando tinham andado o espaço que transpõe a garça de um vôo, o chefe pitiguara tornou-se inquieto e murmurou ao ouvido do cristão:
— Manda à filha do pajé que volte à cabana de seu pai. Ela demora a marcha dos guerreiros.
Martim entristeceu; mas a voz da prudência e da amizade penetrou em seu coração. Avançou para Iracema, e tirou do seio uma voz doce para acalentar a saudade da virgem:
— Mais afunda a raiz da planta na terra, mais custa a arrancá-la. Cada passo de Iracema no caminho da partida, é uma raiz que lança no coração de seu hóspede.
— Iracema quer te acompanhar até onde acabam os campos dos tabajaras, para voltar com o sossego em seu peito.
Martim não respondeu. Continuaram a caminhar, e com eles caminhava a noite; as estrelas desmaiaram; e a frescura da alvorada alegrou a floresta. As roupas da manhã, alvas como o algodão, apareceram no céu.
Poti olhou a mata e parou. Martim compreendeu e disse a Iracema:
— Teu hóspede já não pisa os campos dos tabajaras. É o instante de separar-te dele.
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Iracema - José de Alencar
RomancePublicado no ano de 1865, o livro Iracema é um romance do período romântico da nossa literatura, escrito pelo famoso escritor José de Alencar. Este foi um advogado, político, crítico, jornalista, polemista, dramaturgo, romancista e cronista brasilei...