Treme a selva com o estrupido da carreira do povo tabajara.
O grande Irapuã, primeiro, assoma entre as árvores. Seu olhar rúbido viu o guerreiro branco entre nuvens de sangue; o grito rouco do tigre rompe de seu peito cavernoso.
O chefe tabajara e seu povo vão se precipitar sobre os fugitivos, como a vaga encapelada que arrebenta no Mocoribe.
Eis late o cão selvagem.
Poti solta o grito da alegria:
— O cão de Poti guia os guerreiros de sua taba em socorro teu.
O rouco búzio dos pitiguaras estruge pela floresta. O grande Jacaúna, senhor das praias do mar, chegava do rio das garças com seus melhores guerreiros.
Os pitiguaras recebem o primeiro ímpeto do inimigo nas pontas eriçadas de suas flechas, que eles despedem do arco aos molhos, como o cuandu os espinhos do seu corpo. Logo após soa a pocema, estreita-se o espaço, e a luta se trava face a face.
Jacaúna atacou Irapuã. Prossegue o horrível combate que bastara a dez bravos, e não esgotou ainda a força dos grandes chefes. Quando os dois tacapes se encontram, a batalha toda estremece como um só guerreiro até as entranhas.
O irmão de Iracema veio direito ao estrangeiro, que arrancara a filha de Araquém à cabana hospedeira; o faro da vingança o guia; a vista da irmã assanha a raiva em seu peito. O guerreiro Caubi assalta com furor o inimigo.
Iracema, unida ao flanco de seu guerreiro e esposo, viu de longe Caubi e falou assim:
— Senhor de Iracema, ouve o rogo de tua escrava; não derrama o sangue do filho de Araquém. Se o guerreiro Caubi tem de morrer, morra ele por esta mão, não pela tua.
Martim pôs no rosto da virgem olhos de horror:
— Iracema matará seu irmão?
— Iracema antes quer que o sangue de Caubi tinja sua mão que a tua; porque os olhos de Iracema vêem a ti, e a ela não.
Travam a luta os guerreiros. Caubi combate com furor; o cristão defende-se apenas; mas a seta embebida no arco da esposa guarda a vida do guerreiro contra os botes do inimigo.
Poti já prostrou o velho Andira e quantos guerreiros topou na luta seu válido tacape. Martim lhe abandona o filho de Araquém, e corre sobre Irapuã:
— Jacaúna é um grande chefe, seu colar de guerra dá três voltas ao peito. O tabajara pertence ao guerreiro branco.
— A vingança é a honra do guerreiro, e Jacaúna ama o amigo de Poti.
O grande chefe pitiguara levou além o formidável tacape. O combate renhiu-se entre Irapuã e Martim. A espada do cristão, batendo na clava do selvagem, fez-se em pedaços. O chefe tabajara avançou contra o peito inerme do adversário.
Iracema silvou como a boicininga, e se arremessou ante a fúria do guerreiro tabajara. A arma rígida tremeu na destra possante e o braço caiu desfalecido.
Soava a pocema da vitória. Os guerreiros pitiguaras conduzidos por Jacaúna e Poti varriam a floresta. Os tabajaras, fugindo, arrebataram seu chefe ao ódio da filha de Araquém que o podia abater, como a jandaia abate o prócero coqueiro roendo-lhe o cerne.
Os olhos de Iracema, estendidos pela floresta, viram o chão juncado de cadáveres de seus irmãos; e longe o bando dos guerreiros tabajaras que fugia em nuvem negra de pó. Aquele sangue que enrubescia a terra era o mesmo sangue brioso que lhe ardia nas faces de vergonha.
O pranto orvalhou seu lindo semblante.
Martim afastou-se para não envergonhar a tristeza de Iracema. Deixou que sua dor nua se banhasse nas lágrimas.
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Iracema - José de Alencar
RomancePublicado no ano de 1865, o livro Iracema é um romance do período romântico da nossa literatura, escrito pelo famoso escritor José de Alencar. Este foi um advogado, político, crítico, jornalista, polemista, dramaturgo, romancista e cronista brasilei...