Recomeço

4

Samantha

Manila/ São Paulo

Filipinas/ Brasil

17 anos

Tempo. Tudo aquilo que eu pedia era tempo. Para mim, tudo girava em torno dele. A morte é seguida da dor, que é seguida do luto. Quando um vizinho ou conhecido morre, sentimos, mas nunca é o mesmo sentimento de quando um ente mais que querido se vai, sem nem ao menos se despedir ou dizer palavras carinhosas.

Jackson se foi da minha vida. Não é como se ele tivesse ido até a esquina. Não, é para valer. Nunca mais vou ouvir sua voz, nunca mais vou poder ver o sorriso de sapeca, nenhuma notificação vai chegar, nas férias, eu nem sei se vou conseguir voltar para a casa de meus tios. Isso não podia ser real, essa dor, esse vazio nunca mais será preenchido.

Lembro de poucas coisas no caminho de volta para minha cidade natal. A notícia se espalhou como epidemia em nossa família, que há muito tempo não era mais do que conhecidos para nós. Assim que soubemos, embarcamos no primeiro voo com destino ao Brasil. Eu e meus irmãos fomos na asa, meus pais só conseguiam se abraçar a algumas fileiras atrás.

Henry segurava minha mão, enquanto tentava se manter forte. Benjamin chorava rios encostado a mim. Já eu, apenas conseguia formar um filme na minha cabeça de todos os momentos bons que tive com meu primo e melhor amigo para todo o sempre. Eu chorava, mas tinha que segurar a barra por causa de Ben.

Um táxi aguardava com informações específicas na fachada do aeroporto, chegaríamos em vinte minutos, com sorte.

Meu olhar intercalava com o caixão, as reações das pessoas – principalmente da minha família – e nas folhas das árvores que balançavam com o vento. Naquele dia, até o céu estava chorando, uma garoa fina caía e os guarda-chuvas pretos davam um tom de melancolia ainda mais irritante. Eu queria gritar, bater em alguma coisa, dizer algo engraçado, porém, eu não tinha forças para fazer nada além de ficar sentada chorando baixinho e enrolada em meu cardigã cinza surrado.

Na teoria, o que mais me irritava era o fato de que eu não o veria outra vez. Não sentiria o cafuné, não receberia chamadas de vídeo, não poderia mais uma série de coisas que só com ele poderia. Vai soar egoísta, mas a cada palavra do padre era como uma facada no coração e eu preferia prestar atenção em qualquer outra coisa que não fosse o enterro. Fechei os olhos, contei até dez, tentei imaginar o sorriso dele, tentei não parecer uma pessoa extremamente alheia ao acontecimento, o problema era que eu simplesmente não conseguia. Meu corpo estava lá, minha mente estava em algum lugar das memórias com Jack.

- Eu sei como é. Dói, não? Nunca achamos que vai acontecer conosco – meu tio Daniel disse com um sorriso sem mostrar os dentes. – Mas agora, ele está em um lugar melhor.

Assenti. Preferi me manter quieta, na minha bolha particular. Muitas pessoas fizeram seus discursos em voz alta, algumas apenas jogaram flores, outras optaram por orar em silêncio. Eu preparei um discurso, claro, até pensei em falar. Por outro lado, aquilo me pareceu íntimo demais para aquelas pessoas. Eu estava lá somente por ele.

A partir dali, não me sentia psicologicamente capaz de voltar a Manila.

Meus tios contaram tudo o que aconteceu na noite em que o telefone tocou, já de madrugada.
Jackson voltava para casa pela interestadual - dentro do limite de velocidade -, quando passava por um radar, alguns carros mais atrás faziam um racha e o volume do som estava bem alto. Em menos de dois minutos, eles alcançaram o carro dele, o cercaram e, nesse momento, havia uma curva fechada, que dava acesso ao lago que costumávamos ir pescar. Numa tentativa falha de desviar, frear e fazer a curva, o carro capotou, o fazendo bater a cabeça na janela e o lago apenas o engoliu da pior forma possível.

Uma testemunha que assistia a tudo sem saber o que fazer, chamou a polícia e a ambulância, porém, quando chegaram ao local, não havia mais nada a ser feito. Mergulhadores foram chamados, conseguindo retirar o corpo dele de lá quase duas horas depois.

A polícia determinou que ele morreu por traumatismo craniano seguido de afogamento. Os pulmões estavam cobertos d'água, sem contar as inúmeras lesões e hematomas por todo o corpo. Sangue seco predominava na lateral da cabeça, mas o cinto de segurança continuava no mesmo lugar.

Era muita informação para processar. Era muita coisa que eu ainda precisaria trabalhar para não enlouquecer. Eu fechei os olhos e toda a cena descrita aparecia na minha mente, desde aquele maldito dia que tenho que dormir com meus irmãos ou então de luz acesa.

Meu olhar voltou ao caixão muitas vezes. Tentando, em vão, aceitar que aquilo seria para sempre. Que ele nunca mais estaria lá para mim, que ele nunca mais enxugaria minhas lágrimas, que eu nunca mais poderia visita-lo três vezes ao ano.

Foi a pior época da minha vida, com toda certeza. Uma das pessoas mais importantes da minha vida foi tirada de mim, sem mais nem menos, em cento e vinte segundos, um dos corações da família Evans parou de bater e isso é mais que horrível, é simplesmente insano não sermos mais vinte e cinco pessoas, mas agora, vinte e quatro.

A dor é feita para ser sentida, mas quando vem com tudo, é terrivelmente assustadora. As pessoas não mudam, melhoram seus pontos fracos. Um dos meus, era quem perdi. Para sempre.

- Jack, agora é sério, se puder me ouvir, saiba que eu jamais, em qualquer hipótese, vou te esquecer. Você será para sempre o primo mais adorado por mim, disparado, eu sinto sua falta, muito mesmo, mas eu quero que saiba que escrevi um discurso, não sou uma poeta, juro que tentei. Eu até leria, mas amanhã eu levo para o seu túmulo, ok? Assim, você poderá ler e reler quantas vezes quiser, de preferência deitado em uma cama de nuvem confortável e comendo algum salgadinho. Eu te amo muito. Para toda a eternidade e espero que você se torne meu novo anjo da guarda. Ah, mais uma coisa: estou fazendo algumas provas para uma faculdade no exterior, torça por mim aí de cima. Acho que de todos, a que mais sentirá sua falta serei eu, por termos uma ligação tão forte desde que a vovó Pérola nos deixou. Bom, é isso, cuide da gente e dos nossos corações. Agora, mais do que nunca, a família Evans precisa ficar unida. Cuida de mim, por favor. Não faça com que eu enlouqueça, me deixe nos trilhos, me guie de alguma forma, porque sinceramente estou completamente perdida. Parte de mim, foi junto, e o buraco que se formou não será remendado. Então, continua cuidando de mim.

Sempre seremos nós dois contra tudo.

Meus pais tentaram a todo custo me fazer comer nas semanas seguintes, eu comia e não sentia o gosto de nada. Eu dormia e acordava cinco vezes por noite. Tinha pesadelos com as cenas. Chorava rios e só conseguia pensar em você. Pelos meus cálculos, isso durou quatro meses e emagreci sete quilos. Por sorte, as provas da faculdade já tinham sido feitas.

Só queria que tudo isso fosse um pesadelo e quando meus olhos abrissem novamente, você estivesse ao meu lado no sofá com uma carinha de sono. 

É pedir demais para o tempo voltar?

Eu estarei com você do crepúsculo ao amanhecer.

Jackson: