Capítulo 1

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Capítulo 1

Não aconteceu nenhum fato extraordinário antes que eu tomasse a decisão de partir, não naquele momento. Havia sim um emaranhando de pequenas tristezas do dia-a-dia, acúmulos de anos, dezenove para ser mais precisa, cheios de briguinhas bestas, brigas sérias, muitas discussões, idas e vindas repletas de mágoas, de silêncios ressentidos e principalmente da total negação da verdade: eu e João não éramos compatíveis. Nunca fomos os protagonistas de uma bela história de amor, éramos apenas dois idiotas que se acostumaram a infernizar um a vida do outro, alimentando com nossas cenas ridículas de ciúme, possessão e falta de amor de próprio e mútuo as fofocas sobre nós na cidade. Então, cansada daquela vida pequena, de imaginar o futuro e não ter nenhuma boa perspectiva é que decidi aceitar a proposta de minha melhor amiga Suzi e me mudar de cidade.

Não tendo mesmo muita coisa interessante para contar sobre a minha vida antes da grande decisão vou contar um pouco sobre como estava passando os dias até aquele momento. Bom, sempre vivi em Fontes, uma cidade pequena do interior de São Paulo, pequena mesmo, com cerca de cinco mil habitantes. Meu pai faleceu quando eu ainda tinha treze anos, então passei a adolescência com minha mãe Tereza e minha tia (irmã dela) Beth. As duas, hoje na casa dos sessenta anos, cheias de vigor, têm um lanchonete-boteco-restaurante, do tipo que existe em todas as cidades do país, acredito. Aquele tipo de estabelecimento que serve lanches, pratos feitos e ainda vende miudezas típicas de mercadinho. Embora este fosse o "negócio" da minha família não foi lá que passei a maior parte dos meus dias, estes foram quase que totalmente dedicados ao trabalho nos negócios da família do João, meu ex-marido. Como quase toda cidade pequena, a família dele é aquela que domina o comércio e serviço da cidade, são donos da maior padaria, do supermercado, do hotel, do cinema, da loja de roupas mais esnobe, da lojinha de artesanato, do posto de gasolina, da academia de ginástica... A cidade chama-se Fontes, mas é bem mais conhecida como a cidade dos Rocha (sobrenome da família dele).

Eu e João começamos a namorar antes mesmo de completarmos quinze anos e até então vivíamos grudados. Estudávamos juntos e até fomos para a mesma faculdade e cursamos Administração de Empresas (todos os dias íamos e voltávamos num ônibus que os Rocha alugavam para que os estudantes pudessem ir à cidade vizinha estudar). Nós dois começamos a trabalhar informalmente no escritório central da família dele ainda na adolescência, sem grandes responsabilidades, porém sempre fomos muito dedicados no aspecto profissional, por isso quando nos formamos, eu já ocupava o cargo de auxiliar-administrativo, uma espécie de "braço-direito-faz-tudo" dele e como mais velho da família assumiu junto com o pai o comando das empresas. Sempre fomos uma ótima dupla no trabalho, mas um péssimo casal, o pior da cidade, segundo minha tia, que repetia isso a cada nova briga entre mim e ele. Minha mãe há anos não gastava mais suas palavras para demonstrar seu descontentamento, apenas balançava a cabeça em negativa e estalava a língua no céu da boca em sinal de desgosto a cada vez que eu aparecia na casa delas para pernoitar depois de uma discussão. Nem minha mãe, nem a tia Beth perdiam mais tempo dando conselhos ou perguntando o que havia acontecido para justificar minha presença, simplesmente abriam a porta de casa com visível desgaste e, como de costume já estavam de pé, quando na manhã seguinte, João ia me buscar para retomarmos os afazeres diários como se nada tivesse acontecido. Eu sabia que o que fazia era mais uma espécie de licença para que ele pudesse aprontar de noite e no dia seguinte voltar a vida rotineira com a "esposa". Esposa no sentido figurado mesmo, pois assim que nos formamos, casamos no civil e no religioso como manda a tradição, mas depois de um ano nos separamos formalmente, do mesmo modo que manda a tradição e depois disso voltamos a viver juntos, o que já não posso afirmar que seja tão tradicional assim depois de uma separação.

Nós não éramos um casal exemplar na adolescência, vivíamos brigando, fazendo escândalos, chorando e berrando em público. Nem a família dele (mesmo aparentemente gostando de mim), nem a minha (parecendo também gostar dele) aprovavam o relacionamento nocivo, mas nós dois insistíamos aos berros que não havia amor como o nosso e que nada conseguiria nos separar (vergonha monstra de lembrar destas cenas patéticas!). Nos primeiros anos não havia traição, apenas falta de respeito mútuo, com xingamentos e depreciações, mas com o passar dos anos João começou a aproveitar as noites que eu o deixava só, após de qualquer discussão, para sair com toda e qualquer mulher da cidade que se insinuasse um pouco mais para ele. Mesmo envergonhada tenho que admitir, no auge da minha imbecilidade nutria uma total falta de amor-próprio com aquele tipo de pensamento submisso "ele sai com todas, mas ama apenas a mim, é para mim que ele volta!" (eca!). E como uma mulher traída, cega à verdade, manipulada pelas falsas demonstrações de arrependimento do marido traidor, passei a odiar quase todas as mulheres da cidade e a ser odiada por elas. Mesmo vivendo um inferno dentro de casa, caminhava pela rua orgulhosa, com o braço atracado ao dele exibindo-me como possuidora de um troféu (eca novamente!).

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